segunda-feira, 4 de junho de 2018

MARIANA IANELLI | Da realidade ao enigma



A poesia como reduto de esplendor e inspiração, embora tenha perdido muito do seu prestígio, nem mesmo na modernidade foi inteiramente desacreditada, como provam Cecília Meireles e Jorge de Lima. Hoje, esse lugar de esplendor, ocupa-o com destaque Maria Lúcia Dal Farra, que aos 67 anos lança “Alumbramentos”, seu terceiro volume de poemas. Não é por simples tributo que uma evocação de Cecília e versos de “Invenção de Orfeu” estão presentes no livro. Estes são apenas dois exemplos de uma ampla comunidade literária e artística que inspira, no sentido mais elevado, a poesia de Maria Lúcia Dal Farra.
De seus livros anteriores, ressurgem os lampejos pictóricos de Van Gogh e Gustav Klimt, versos de Herberto Helder e Rilke, ressurge a força mítica das Parcas em sua urdidura do destino. Dal Farra chama a este seu novo livro “palimpsestos”, e a si mesma se diz “passageira de lumes”, designação poética colhida de versos antigos, que também deram origem ao título de seu livro de crônicas, “Inquilina do Intervalo”, de 2005. Arrebatamento lírico e maturação reflexiva, capaz tanto de análise como de síntese, partem de uma só energia fecundante que transmuda o observador na coisa observada e o maravilhamento da poeta diante da natureza, de um corpo ou de uma obra de arte, no poder do seu poema de maravilhar o outro. Como na cópula da abelha com a orquídea de uma de suas “vergilianas”, do “Livro de Possuídos”, sua poética é uma arte do acasalamento entre diferentes linguagens e sentidos, que produz alquimicamente um novo sentido a que se pode dar o nome de sublime.


“Alumbramentos” se divide em nove seções: Anne Sexton, Cinco sonetos para Mariana Alcoforado, Lorca, Dalí, Van Gogh, Max Ernst, Rilke, Klimt e La dame à la licorne. Esta última seção, simbólica, sobretudo, no que concerne à poética da autora, reúne alguns dos mais belos poemas já escritos sobre as seis tapeçarias do séc. XV atualmente pertencentes ao Museu Nacional da Idade Média de Paris (Museu de Cluny). A iconografia dessas peças descobertas em 1841, no Castelo de Boussac, seduziu muitos escritores, entre eles Rilke, George Sand e María Victoria Atencia, a divagar sobre os seus enigmas. Dal Farra já havia feito uma leitura de La dame à la licorne em seu livro de estreia, “Livro de Auras”, no poema “As damas”.
Em uma alegoria adotada desde o século passado por comentaristas e pelo próprio Museu de Cluny como referência para a interpretação das peças, cinco das seis tapeçarias representam os cinco sentidos. A sexta tapeçaria, a mais exuberante e misteriosa do conjunto, sugere uma representação do sentido da beleza da alma. Sobre esse elemento etéreo, Dal Farra diz em seu poema “Cabala”: “É o zero, é o três, é o quatro, é o sete – é Deus./ É o mercúrio a seduzir o enxofre./ As plantas, e os animais, e eu/ somos transpostos para outra esfera/ onde o prodígio da Grã-obra impera./ Licorne: cavalo solar – cavala”. A suntuosidade de flores, frutos e animais nesta ilha solitária da tapeçaria, que traz em seu centro uma dama também ricamente vestida, remonta ao esplendor dos poemas de “Alumbramentos”. A aventura que leva “da realidade até o enigma”, à qual a autora certa vez se referiu ao tratar da poesia de Herberto Helder em um de seus textos críticos, é ainda uma aventura que sua própria poesia empreende, e que envolve uma ciência dos sentidos.
Pode-se admirar melhor esta ciência em "vergilianas", poemas que investigam sensualmente a natureza, penetrando, com todos os sentidos, árvores, plantas, flores e frutos, até chegar a este sentido unificante do sublime. Esta síntese contempla sempre um elemento enigmático, a "exalação de mistério" de quando se morde um fruto d'ouro, os "segredos amorosos de antanho" no ventre de uma sequóia, o enigma de Proserpina nas sementes de uma romã, o tempo eterno que um nenúfar salvaguarda, "no abrigo do guarda-chuva invertido/ onde Siddharta alcança o nirvana", ou ainda, no caroço de um pêssego, "o espírito e o enigma de sua árvore imortal".
Segredos de beleza e de morte se alojam no simbolismo dessa poesia, mistérios do amor e do tempo no sumo da fruta oferecida, pronta para ser devorada, tal como o artista se deixa devorar por sua pintura, no poema “Velásquez pintando a infanta Margarida com as luzes e as sombras da sua própria glória”: “Miúdo/ (imperceptível)/ o pintor deu-lhe tudo/ (cores, formas, altivez, perfume)/ e se exauriu./ Em troca/ mudou-se nela/ passou-se para a tela –/ não mais localizável naquela calle de Sevilha/ ou nalgum/ dos endereços que frequentou./ Será a arte canibal?”. O artista devorado pela beleza, a beleza devorada pela morte: vem dessa transmutação, pelo “milagre da escrita”, a imagem de um jardim que, depois de parasitado pela lagarta, ressuscita em luz e cor “nas borboletas (em seu engenho e arte)”. Vem também desta secreta alquimia o céu vermelho de La dame à la licorne, “fundo picado do sangue dos muitos dedos/ que lavraram a tapeçaria”.


A eterna renovação, com voluptuosidade e mistério, prova-se a si mesma nos poemas deste novo livro, mais uma peça primorosa na obra de Maria Lúcia Dal Farra. Como já prenunciava em suas “vergilianas”, “um século há de vir em que o alento/ torne o mundo poesia”. Dal Farra não se intimida, portanto, nestes tempos, com qualquer má reputação atribuída à noção de uma poesia inspirada. Em seu poema “Musa”, escreve: “Trabalho com os dedos/ a tua antiga face/ porque é dela que me vem/ a permanente beleza”. É dessa potência de vida, dessa beleza intemporal, que os poemas de “Alumbramentos” são feitos.

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MARIANA IANELLI (São Paulo, 1979) é graduada em Jornalismo, mestre em Literatura, poeta, contista, ensaísta, cronista e crítica literária. Em 2008 recebeu o prêmio Fundação Bunge-Literatura (antigo Moinho Santista); em 2011 obteve menção honrosa da Casa das Américas (Cuba) pelo livro Treva Alvorada. Sua obra é composta, além deste volume, de Trajetória de antes (1999), Duas Chagas (2001), Passagens (2003), Fazer Silêncio (2005), Almádena (2007), O Amor e Depois (2012), Breves Anotações sobre um tigre (2013), Alberto Pucheu – Ciranda da Poesia (2013), Tempo de Voltar (2016), tendo sido, por quatro vezes, finalista do Prêmio Jabuti. A resenha original foi publicada no jornal O Globo, Caderno Prosa, em 11 de agosto de 2012.


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Agulha Revista de Cultura
Número 114 | Junho de 2018
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