segunda-feira, 4 de junho de 2018

ANA LUÍSA AMARAL | Alumbramentos, de Maria Lúcia Dal Farra



O título do livro de Maria Lúcia Dal Farra, vencedor em 2012 na categoria de Poesia do mais prestigiado prémio brasileiro, o Prémio Jabuti, serve-se de uma palavra pouco usual na língua portuguesa: “alumbramentos”. A opção por essa palavra, que, na sua forma singular, tem por sinónimo “deslumbramento”, é-nos explicada numa espécie de nota prévia aos poemas, em que a poeta diz querer para si “o regaço de Bandeira” (p. 16). Um leitor de poesia brasileira recordar-se-á que o poema a que a autora se refere é “Alumbramento”. Nesse poema, Manuel Bandeira convoca para um idêntico patamar o místico e o erótico, o corpo amado e o corpo estelar, a carne e a alma, sendo a comunhão conseguida através da visão como via para a transfiguração das coisas. Se a isto juntarmos o facto de “alumbramento” ter sentidos que vão para além do de deslumbramento, remetendo também para a contemplação mística e sugerindo a experiência da inspiração enquanto iluminação inexplicável, podemos encontrar parcialmente desvendada a chave de entrada para a leitura destes poemas que vivem de diálogos, provando, como nos diz a sua autora, que “[t]oda a literatura (toda a arte) é consubstancial” (p. 16).
Há um poema do livro, intitulado precisamente “Punhados para um poema”, que me parece ser especialmente feliz na ilustração desse estado  misto de ofuscação e maravilhamento perante a poesia e o mundo: “Tudo o que o poema deve ter: // fúrias aladas, alaúdes, /profecias, corpo, destemperos, / balaústres contra o tempo, / gorjeios do impossível, / demónios – / vida, a mais doída. (...) Faze dela /
o teu dilema // – o tão aguardado amor.” (p. 108). Nesta declaração poética se resume a complexidade e a variedade do rico “pecúlio de luzes latentes” (p. 16) de outras obras de que são feitos e que entrelaçam os poemas deste livro, dividido em nove secções (nove, e não dez, que seria o número de esperada proporção), onde, transgredindo-se tempos e ordens cronológicas, se dialoga com poetas, escritores e artistas de várias épocas e nacionalidades, assim se explorando relações ecfrásticas e intertextuais. Os títulos das secções, precedidas todas elas por belas e eloquentes epígrafes, são“Anne Sexton”, “Cinco Sonetos para Mariana Alcoforado”, “Lorca”, “Dali”, “Van Gogh”, “Max Ernst”, “Rilke”, “Klimt” e “La Dame ala Licorne”. O livro obedece, pois, a uma rigorosa e erudita construção, que cobre marcos vários da pintura e da literatura europeias, da Idade Média à contemporaneidade, nas suas “variegadas linhagens e linguagens” (p. 16).
É significativo que o livro abra com uma secção “dedicada” a Anne Sexton, a poetisa norte-americana contemporânea de Sylvia Plath e Adrienne Rich, autora de uma série de poemas sobre fúrias (daí as “fúrias aladas” de “Punhados para um Poema”, daí pequenos rastos vocabulares noutros poemas, como “a rouca voz do galo” [p. 26], evocativo do poema de Sexton “A Fúria dos Galos”) e feche com uma secção que tem por título “La Dame a la Licorne” – o confessionalismo de Sexton e a dimensão por vezes autobiográfica da sua poesia contrastando com o carácter anónimo desse extraordinário conjunto medieval de tapeçarias (a que voltarei mais tarde), convocado também por Rainer Maria Rilke, um dos poetas trazidos para esta “morada dilatada” (p. 16) de criadores vários, em Os cadernos de Malte LauridsBrigge (1910). A Rilke Maria Lúcia Dal Farra pede emprestado o célebre início da primeira das suas Elegias de Duíno (1923): “Quem, se eu gritar, me ouvirá, pois, dentre / a legião de anjos?”. Mas, sobre a sua interrogação, a poetisa interroga “Quem / (se eu gritar) / me acudirá / debaixo da imensidão dos céus?” (p. 114), as legiões de anjos de Rilke a transformarem-se em “legião dispersa de anjos”, o mistério do ser humano e do seu destino, que tanto inquietara Rilke num mundo então em erosão, a tornar-se agora mais erodido ainda, por isso já não dos anjos a companhia, mas céu aberto e imenso.
Tal como em Rilke, que, pela voz do seu narrador dinamarquês Malte Laurids Brigge, afirmara começar a “aprend[er] a ver”, a visão parece ser nestes poemas o sentido privilegiado, tornando-se o vínculo e o veículo entre poema e imagem, ou entre corpo do texto e corpo pictórico. Mas, tal como em Rilke, a experiência da visão física é superada pela transfiguração do olhar, tornando-se a descrição do mundo sensível metamorfoseada pela experiência do invisível e expandida pelo “vasto mistério” (p. 71). Como se estivéssemos ao mesmo tempo perante uma poesia do corpo e uma poesia do coração e da imaginação.
Talvez por isso tenha elegido Maria Lúcia Dal Farra pintoressimbolistas e surrealistas como fonte para estes alumbramentos, com eles conversando de forma mais ou menos explícita – veja-se poemas como “O Concílio Ecuménico” [p. 64], da secção “Dali”, em que poema e título de quadro se justapõem, ou “O Amor”, da secção “Klimt”, em que o quadro Le Baiser é o ponto de partida do poema: “São tantos de nós a vigiar o beijo / que é preciso / fechar os olhos / para estarmos / a sós” (p. 117); veja-se ainda como é possível convocar para um mesmo poema, sugestivamente intitulado “Palimpsesto” (p. 100), Nadja, Breton, Chirico e Max Ernst, cruzando o ficcional com o factual, fragmentando o uno, ou unificando aquilo que é,  em princípio, fragmentado.
Talvez por isso se dedique a, já aqui referida, última secção do livro às tapeçarias de “La Dame a la Licorne”. Nelas, graças aos “artistas da alquimia” (p.139), os “[e]nsinamentos do ouvido / transmigram para a vista / que amplia ao máximo a tapeçaria – / inventando parelhas pelo espelho reflectidas” (p. 135). A máxima de que tudo é “prodígio da vista” (p. 138), o mesmo que é dizer milagre dela, fica aquém do que se explora depois: tal como na rica simbologia das seis peças, também nestes poemas se entretecem os cinco sentidos – e mais um, o do entendimento, ou do amor. É quando o unicórnio, feito “meigo bichinho”, “ensina à dama o regime do sol”, lhe “passa tudo o que sabe”; mas é também quando ele só adquire corpo e essência própria porque “é o amor dela que lhe dá sentido”. (p. 133)
Os poemas deste livro são“trabalhos de agulha”, em que é possível “distend[er] do “bastidor / a seda” (p. 32), ou invocar “o fuso das parcas” (p. 26). Daí que deles emerja o corpo, sensual e, o mais das vezes, feminino, como nos “Cinco sonetos para Mariana Alcoforado”, alguns de registo camoniano, que, até nos títulos, parecem acompanhar os estados de humor da jovem freira de Beja, as suas falas e falhas, a sua oscilação entre o ódio e a adoração. Aqui actualizados e tornados do nosso tempo. Valerá a pena pensar no segundo soneto deste grupo, o “Soneto Perverso” (p. 40), que refaz o conhecido soneto de Jorge de Sena, dele aproveitando apenas o mote: “Amo-te muito, meu amor, e tanto”. Se no soneto de Sena o amor serve de pretexto para a denúncia dos desmandos e da situação política vivida em Portugal no tempo do fascismo, o soneto de Maria Lúcia Dal Farra, mudando a voz para o feminino e centrando-a nessa figura singular feita mítica, recoloca a política no espaço dos corpos erotizados, em que a mulher se afirma claramente como sujeito activo: “”Amo-te muito, meu amor, e tanto / que de amar-te estou disposta em dano (...) // Estou vencida mas quisera, entanto, / nos braços teus abrir-me em furor / como um tapete, echarpe, táctil manto // que de veludo e espinho (em mista dor), / te molestasse, te ferisse tanto / – só pra em seguida mitigar-te, amor.” (id.) A visão trabalhada nestes sonetos é, por isso, uma visão transfigurada, o mesmo que é dizer inspirada, como a do último soneto, chamado justamente “Transfiguração” (p. 43), que, podendo ser evocativo da morte de Mariana – e a voz que fala o poema é já incógnita – recorre à metamorfose da lagarta em borboleta, ou da vitória da vida sobre a morte.
Não me parece que estes poemas de Maria Lúcia Dal Farra possam ser ditos, como ela declara na nota introdutória, “simples palimpsestos” (p. 15). O que lhes subjaz parece-me antes poder ser articulado com a proposta da poeta anglo-americana Denise Levertov em “Some Notes on Organic Form” (1965). Aí, Levertov escreve: “Contemplar vem de templum”, ‘um espaço de observação marcado pelo augúrio’. Não quer dizer somente observar, ver, olhar, mas fazer estas coisas na presença de um deus. E meditar é ‘manter a mente em estado de contemplação’”. É mais feliz a língua inglesa, que faz equivaler o verbo “to contemplate” ao verbo “to muse”, o qual, continua Levertov, “vem de uma palavra que significa ‘ficar de boca aberta’, ou seja, ‘respirar para dentro, inspirar’”. É esta concepção de inspiração, aquela que encara o processo criativo como forma para além das formas, na exploração de uma paisagem interior que simultaneamente se declara verdadeiramente dialogante, que aqui está presente. E presente está ainda uma concepção de inspiração semelhante à defendida por Lorca (um dos poetas também eleitos neste livro), que se ancora na figura simbólica já não da musa, mas do duende, aquele que consegue refazer a origem da possessão,centrando-a no próprio poeta.
Dos outros – poetas, pintores, criadores, figuras imaginadas ou reais – herdam-se, pois, fulgurações, que passam tanto por palavras ou ideias, quanto pela exploração de formas, que vão desde o soneto ao verso livre. Mas sempre a forma para além das formas. Essas fulgurações vêm, assim, daqueles e daquelas que com a poeta mais de perto, embora por vezes longe na tradição, dialogam. Porque a tradição é isso mesmo: um longo e cheio diálogo com os que nos antecederam e com aqueles que hão-de vir. E esses que hão-de vir são também aqui contemplados, na “insistência das dedicatórias”, como nos adverte a autora (p. 16). O que faz deste livro, para além de “morada dilatada”, um “livro de simultâneos”, um “compêndio de partilhas” (id.).
Talvez a poesia seja isto: uma via para o conhecimento, entre espaços de vazio. Também uma prega no tempo da língua, ou uma língua que efectua uma relação com os mortos e com aqueles que ainda não nasceram. Situada entre o passado e o futuro, num espaço onde a poeta, essa que se designa como “uma (...) passageira de lumes” (p. 16), pode agora dizer de si: “Trapezista amante do circo, / fico sem vigas para sustentar o dia” (p. 27). Sem vigas, talvez, e ainda bem. Mas com lumes que são seus.


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ANA LUÍSA AMARAL (Lisboa, 1956) é poetisa portuguesa, tradutora e professora de Literatura e Cultura Inglesa e Americana na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Possui inúmeras traduções e sua obra poética é populosa, para além de obras de teatro, ficção infantil, traduzidas em diversas línguas: Minha senhora de quê (1999), Coisas de partir (1993), Epopeias (1994), E muitos os caminhos (1995), Às vezes o paraíso (1998), Imagens (2000), Imagias (2002), A arte de ser tigre (2003), Poesia Reunida 1990-2005, A génese do amor (2005), Entre dois rios e outras noites (2008), Se fosse um intervalo (2009), Inversos, Poesia 1990-2010, Escuro (2014), E Todavia (2015), Aras (2016) Ana Luísa foi agraciada com diversos prêmios, inclusive o Grande Prêmio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores. Sob o título “Maria Lúcia Dal Farra, Alumbramentos, São Paulo, Iluminuras, 2012. Recensão crítica”, ela publicou este texto na Colóquio/Letras n. 185. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, jan.2014.


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Agulha Revista de Cultura
Número 114 | Junho de 2018
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