Não quero ir-me sem ter desfiado todo o rosário;
quero inclusive as cruzes, as genuflexões e o derradeiro credo,
onde gritarei uma nova crença que espantará.
Maria Lúcia Dal Farra
A fotografia que
encabeça este artigo apresenta Maria Lúcia Dal Farra com sobretudo roxo, acompanhada
de alguns pares da área dos estudos literários,
no evento “Vozes da Literatura Portuguesa”, realizado por
meio da Casa Fernando Pessoa de Lisboa, em algumas cidades brasileiras, no ano de
Portugal no Brasil, em 2013. O encontro teve como
objetivo principal aproximar as literaturas brasileira e portuguesa, encontrando nos debates, propiciados por esse evento, uma forma
de problematizar as produções escritas criativas desses países.
Na imagem temos Marcelo Carvalho, da Biblioteca Mário de Andrade, Inês Pedrosa, Caio
Torão, Lídia Jorge, Ignácio de Loyola Brandão, Maria dos Anjos Oliveira, Patrícia
Reis, Rui Zink e Mário Dunder flagrados no decorrer do referido evento. Essa cena é bastante emblemática para pensarmos um traço
fundamental presente na poética de Maria Lúcia Dal Farra e para refletirmos como isso atravessa em correnteza para a
poesia dessa escritora: o estabelecimento de diálogo com outros escritores.
Dando um zoom na foto, bem ao lado de Dal
Farra, em cumplicidade, encontramos Inês Pedrosa, escritora portuguesa de destaque
em seu país nativo, com mais de uma dezena de livros publicados. Essa relação de
Pedrosa com Dal Farra se dá por alguns aspectos, dentre eles: a relação estreita
que a escritora brasileira estabelece com Portugal [1] e, também, não por coincidência, é a mesma
escritora portuguesa que
escreve a orelha do livro de poesias de Dal Farra – Alumbramentos (2012). Nessa apresentação, Inês Pedrosa mescla um olhar
analítico e a inflexão encantatória da amiga-cúmplice-leitora
para o livro que estava chegando às livrarias.
Essa imagem denuncia o quanto a relação dialógica
é considerada fundamental para o processo de escrita de
Maria Lúcia Dal Farra. Acrescemos que Inês Pedrosa, no lançamento do seu livro, Os íntimos, [2] também foi
recenseada por Dal Farra. Percebe-se, portanto, que essa troca (prática tão comum
na literatura) extrapola limites quando o desejo de interlocução se transforma em
uma caligrafia de autora. [3] Falamos assim, pois cremos que existe um desejo de Maria
Lúcia Dal Farra de expressar esse diálogo em suas
produções e apresentar para os leitores a sua comunicação com outros ficcionistas.
Consoante a isso, apesar de a imagem trazer um pequeno
retrato dos confrades de Maria Lúcia Dal Farra, poderíamos compor um retrato muito
maior, em que a poetisa estivesse acompanhada de um grupo de autores com o qual deseja manter
interlocução. Se, para alguns autores, o diálogo com a
tradição literária ocorre de modo subliminar, percebido nas entrelinhas do texto
ou mesmo quando o autor declara, em depoimentos e entrevistas, sua rede imantada
que ora aproxima, ora repele esse diálogo, Dal Farra se comporta com os escritores
com quem estabelece diálogo como se fosse um movimento
de ode (uma homenagem, uma reverência) e de exclusão (haja vista que, ao eleger,
suprime alguns outros autores).
Exemplo disso, justamente concedido em uma
entrevista pela autora, quando, questionada sobre quais são as suas referências
literárias e intelectuais, não titubeia em expor com nomes a sua confraria que,
segundo ela, perpassa por Rilke, Lorca, Pedrosa, Clarice, Cecília e tantos outros.
Esses mesmos nomes que ela expressa como pertencentes
ao seu grupo de favoritos vão encontrar na sua poesia uma hospedaria, nomes com
os quais ela tenazmente convive e que introduz no seu próprio texto. Não obstante,
no decorrer dessa mesma resposta, a escritora afirma,
de modo contumaz, que a lista de autores por ela construída como sendo da
sua preferência não está completamente fechada. Ao contrário, afirma: “[...] e esta
ordenação é puramente aleatória, sendo que deploro muito não apreciar ainda aqueles
autores que não cheguei a conhecer, [...] o que significa que esta lista permanece
aberta até o fim dos tempos.” Sendo assim, a escrita de
Dal Farra e o seu grupo de
“eleições literárias” não são configurados como acabados, mas ao inverso, em constantes acréscimos e remanejamentos. Por isso, acreditamos que a autora faz valer, em sua escrita poética, o seu papel como intelectual, professora e pesquisadora atenta às produções literárias que pululam no Brasil e no exterior. Não estando conformada em trazê-las somente quando está dedicada a escrever as suas produções científicas, por meio de ensaios e artigos, incorpora essas leituras também em sua produção criativa.
“eleições literárias” não são configurados como acabados, mas ao inverso, em constantes acréscimos e remanejamentos. Por isso, acreditamos que a autora faz valer, em sua escrita poética, o seu papel como intelectual, professora e pesquisadora atenta às produções literárias que pululam no Brasil e no exterior. Não estando conformada em trazê-las somente quando está dedicada a escrever as suas produções científicas, por meio de ensaios e artigos, incorpora essas leituras também em sua produção criativa.
Desse modo, apostamos que a alquimia
das letras [4] é um procedimento
que está presente de modo operante na escrita dalfarreana. Trata-se de afirmar que
as letras, a linguagem poética, não estão somente dispostas para o novo, o original,
mas, acima de tudo, colocadas em uma situação de recriação. Os procedimentos alquímicos
são tomados em caráter alegórico para pensarmos que, se os postulados alquímicos
afirmam a crença na transformação como força vital da criação e da vida, na estética
de Dal Farra as palavras se organizam em estruturas que escapam de um novo absoluto,
mas sim, movido pelo signo da transmutação, fazendo emergir outros textos e leituras.
Acerca disso, Marjorie Perloff
(2013), em O gênio não original, faz um
balanço acerca da poesia e da figura do poeta no século XXI. A teórica constata
que estamos numa era em que se discute bastante sobre o que é originalidade, e por
mais que essa questão tenha entrado nos circuitos de debates, ainda permanece nos
leitores e críticos um desejo de “novidade”. No entanto, na contramão desse desejo
do “novo”, Perloff sugere pensar
a genialidade do autor por outras vias. Enquanto o gênio do século XIX ainda era
aquele cuja obra anunciasse a assunção de algo completamente
inaugural e maravilhoso, as demandas são outras em nosso século.
Estamos alocados num momento em que os fragmentos
se juntam em prol da criação artística. A teórica alerta-nos
ainda que “[...] a citacionalidade – com sua dialética de remoção e enxerto, disjunção
e conjunção, sua interpenetração de origem e destruição – é central para a poética
do século 21.” Portanto, cabe ao poeta manejar os objetos culturais que estão à
sua disposição e manuseá-los de acordo com os seus interesses. Mas “[...] não se
trata de ‘renovar’ de Pound, mas do ‘Pegue um objeto. Faça alguma coisa com ele.
Faça alguma outra coisa ainda com ele’ de Jasper Johns.” Isto é, o objeto sai da
sua condição estática. O livro de um autor sai da estante e é dado a esse objeto um estado de ânimo no processo criativo, quando apropriado. Com isso, uma circulação
da literatura acontece, ela se movimenta e é reinventada constantemente.
É por esse caminho que percorre a poética
de Maria Lúcia Dal Farra desde o seu título de estreia. No Livro de Auras (1994), esse
diálogo com outros escritores ainda é estabelecido de
modo tímido. No entanto, em um esforço de puxar os fios dialógicos nesse livro,
já podemos encontrar alguns exemplares dessa vontade de estabelecer uma “conversa”
com os autores da sua “biblioteca”. [5] Caso explicativo dessa situação está no
poema “João e Joan”, que em seu título traz os nomes de dois artistas com os quais
a escritora objetiva travar interlocução – João Cabral de Melo Neto e Joan Miró.
O poema trata de como se deve proceder para a elaboração do texto artístico, tendo
como aportes a apropriação dos processos criativos do poeta e do pintor citados.
Nos primeiros versos, os artistas
(em nome e sobrenome) são convocados para que, por meio das artes deles e, por conseguinte,
de seus procedimentos artísticos, seja possível pensar acerca do processo criativo
da própria escritora. Vejamos
os primeiros versos desse texto poético: “Quando fala João Cabral / da mão esquerda
de Miró / é com destra que penteia / a crina das próprias sílabas / empinando seu
poema / para o sertão dos garranchos: as letras e algarismos
/ atraem-se por faísca – pedra, lâmina e cal.” João Cabral de Melo Neto, sendo considerado
um “arquiteto da linguagem”, figura fundamental da geração de 45 da literatura brasileira,
foi responsável por se aprofundar na linguagem, lidar com as letras como se essas
fossem instrumentos que devessem ser minuciosamente decantados. Por outro
lado, Joan Miró, surrealista catalão, utilizou outra linguagem, a pictórica, para
apresentar, por meio de suas cores, um olhar outro para a realidade que nos circunda:
uma perspectiva enviesada, amalgamada através de gravuras que destoam do realismo,
remetendo ao onírico.
Com as prerrogativas desses dois artistas,
Maria Lúcia Dal Farra apropria-se daquilo que mais lhe
atrai dessas respectivas poéticas e constrói a sua própria linguagem. Em
“João e Joan”, Maria Lúcia “toma emprestado” de João Cabral
a acuidade com as palavras e, de Joan Miró, a forma de escapar da realidade, arremessando
para a fantasia. Os elementos de Cabral dos quais a autora deseja se apropriar estão
presentes nos vocábulos “pedra”, “lâmina” e “cal”, palavras que remetem à construção
e à engenharia, mas, aqui, na elaboração do texto lírico, aparecem nessas expressões:
o corte laminar, a pedra que sustenta e a cal que emulsiona os elementos,
as palavras de ordem para que um texto poético possa ser construído.
Da palheta de cores de Miró, serve-se do descompasso
com o real, a maneira que o pintor recorreu ao devaneio e à imaginação para as suas
pinturas, dando a essas prerrogativas valoração máxima. Leiamos o seguinte trecho
do mesmo poema: “Amarelo fica o azul / da tanta luz que lhe infunde: / tal explica
o canavial / assim perto ao cemitério”; desse excerto poético, podemos extrair duas
imagens em conexão: o azul que se transmuta em amarelo pela ação de uma luz intensa
e a conexão de dois cenários aparentemente díspares: o cemitério e o canavial. Justamente
se encontra nesse desconexo a força motriz do desejo de expressão dalfarreano –
construir pontes de relação, arcos de união e estabelecimento de beleza entre os
elementos que, de modo aparente, não teriam aproximação. Dar ao azul a força do
amarelo e ao cemitério a pompa de vida que se encerra em um canavial verdejante
é a maneira de unir extremos em uma mesma construção literária.
Do escritor brasileiro, Dal Farra quer extrair
o “corte certeiro”, a maneira de recorrer às palavras buscando as combinações e
as eleições mais ideais; Dal Farra quer “catar feijões”, [6] escolhendo os grãos que mais lhe aprouverem para o seu processo de
escrita criativa, seguindo os ritmos que estão “[...] no martelo galopado / na madeira
martelada [...]”. Do pintor catalão, Dal Farra quer a cena de escape que rume ao
sonho; deseja os desalinhamentos e aproximações das mais inusitadas, tais como:
“A bailadora flamenca / (um alfinete e uma pena) / sapateia em Barcelona / (com
saias de Andaluzia) / um xaxado nordestino [...]”. De Miró, existe, ainda, um desejo
dionisíaco de imagens em profusão realizado pelo princípio da concomitância. De
Cabral, ocorre uma vontade apolínea de apuro com as palavras. De ambos, Dal Farra
toma a lição daquilo que mais a atrai e coloca em seu poema, ensinamento que, por
sua vez, leciona outras perspectivas para os seus leitores por meio de suas poesias
e, assim, lança-se ao infinito.
Ainda no Livro de Auras, podemos encontrar presentes dois poemas que se propõem
a estabelecer o diálogo intertextual com dois textos do poeta tcheco, nascido na
cidade de Praga, Rainer Maria Rilke. Reiterando o já exposto anteriormente, nesse
primeiro livro, as relações dialógicas com outros autores acontecem de modo menos
intenso e menos declarado. Cabe salientar, ainda, que o referido poeta terá uma
seção exclusiva no Alumbramentos. A primeira
leitura que Dal Farra irá efetuar sobre Rilke é sobre as panteras, tendo em sua
caligrafia o título homônimo de “A pantera”. [7]
Entre os dois poemas existe um trânsito intertextual
dialógico bem marcado, trazendo na condição da pantera presa em uma jaula (e as
suas angústias atrás das grades) o sentimento que pode ser amplificado para o humano:
o desolamento, o sentir-se perdido e a condição de estar privado de viver livremente.
Leiamos o poema:
De
tanto perpassar as grades
o
olhar
(domado
por torpor profundo)
mais
nada agarra.
A
ronda dos passos dúcteis
é
dança
(só
vigorosa)
na
sua enorme aspiração sem rumo.
De
quando em vez
o
véu das pupilas abre –
desgarradas.
Do
chão as patas recolhem
a
esquecida força do instinto
que
(súbito)
alarma
o veludo no raio
que
se ateia no seu pêlo
e
que no peito
o
inútil coração abafa.
O encaminhamento do poema segue a torrente
da prisão do animal e a sua perspectiva de desilusão perante o mundo. O olhar cansado
e trôpego de tanto percorrer as grades que o cercam leva o animal a caminhar por
um percurso de atenuado desencanto, arrastando-o para uma falta de aspiração de
vida. Por mais que os instintos mais orgânicos da pantera a direcionassem para rebelar-se
daquela condição, o corpo entra em estado de letárgica apatia.
‘Retomando o poema de Rilke, “A pantera”,
[8] podemos observar clara recapitulação
feita por Maria Lúcia Dal Farra com relação ao poema matriz do citado poeta. O que
existe na poesia elaborada pelo punho dalfarreano é, na verdade, um novo arranjo
de palavras, uma atualização da temática em seu tempo, uma releitura, enfim, da
peça lírica elaborada pela autora. A posição de Dal Farra em repetir o poema como
sendo uma leitora da obra de arte de Rilke é apostar que a literatura não se esgota,
ela está sempre disposta a ser tomada novamente e, com isso, construir outros lastros
de significação.
O poema “A pantera”, escrito em 1903
por Rilke, apresenta, por meio de imagens poéticas, a condição de encarceramento
do homem em si mesmo e suas privações diversas que o levam não mais à rebelião instintiva,
mas ao conformismo. Essa condição é similar à transposta para o século XX, quando
Dal Farra retoma o mesmo poema, recriando-o: um século que inaugura a depressão
em avalanche; o encarceramento nas casas por estarmos sempre em estado de vigilância
por uma violência atroz que consome a sociedade; o emudecimento sendo a estratégia
mais eficaz para se preservar a vida. Mas, em ambos os poemas, o que permanece é
o mesmo fundo: a pantera que deseja em suas pupilas rutilantes o escape, mesmo não
encontrando válvulas que a levem para fora das grades.
Ainda por essa mesma linha, o poema “A morte
do meu pai”, de Dal Farra, retoma o poema de mesmo
título escrito por Rilke. A estratégia de construção do texto poético é similar
ao de “A pantera”, ou seja, a autora se apropria do poema do autor, seu confrade,
e o traz para seu tempo, para os seus interesses e desejos. No referido poema, a
escritora constrói a cena de um filho que contempla o rosto pálido do falecido pai,
em vigília de seu corpo. O ato de olhar para o pai, e acariciar a face, encaminha
esse mesmo sujeito para um fluxo de lembranças, e cada parte do rosto observado
se transforma em uma paisagem por onde ele caminhou: prados, águas e declives. O
rosto se transforma em um mapa da história desse homem morto.
Não é por acaso que esse poema é eleito por
Dal Farra para ser lido e retomado em seu primeiro livro de ficção. “A morte do
meu pai” está situado na seção “Lição
de Casa”, do Livro de Auras; em toda a
seção do livro, existe um ato de reverência da escritora para a sua genealogia,
em que vai escavando várias recordações do seu núcleo familiar para “poetizar” a
sua história. Nessa parte da publicação, avós, tios, pai e mãe são relembrados através
de histórias significantes. Com o poema que retoma a morte da figura paterna, talvez
a forma de explanar a significância da perda não tenha sido encontrada em uma dicção
melhor do que a do próprio Rilke – a forma encontrada de expressão tenha sido falar
disso na companhia de outro escritor.
Podemos rastrear com isso que a alquimia das
letras na poética de Dal Farra – funcionando em trazer o outro, transmutando-o e
considerando-o também como sua propriedade – encaminha-nos para as reflexões de
Gilles Deleuze, em Repetição e diferença
(1988). O discurso literário construído por Dal Farra se pauta em trazer a fala
da alteridade por meio de citações, cópias, borrões de outros escritores, rasuras
e, por meio disso, apropriar-se dessas falas e consumá-las como sua propriedade.
Nas considerações empreendidas em Repetição e diferença, o filósofo se pauta
em várias áreas do conhecimento (história, sociologia, psicologia, dentre outras)
e distintas perspectivas acerca do ato de repetir para construir um discurso filosófico.
Discurso esse que objetiva elaborar a tese de que a repetição não é um mero ato
mecânico de trazer à tona sempre o mesmo, mas, em verdade, repetir, para ele, significa
elaborar o diferente em processo contínuo. Tem-se, além disso, para a “diferença”
um grau de significativa importância para o pensamento do filósofo.
Ao abordar as figurações da imagem do poeta,
considera que esse é um dos principais responsáveis pela instauração da diferença
no instante em que produz os seus textos criativos. Para ele, uma das maneiras de
fundar o estabelecimento da ordem da diferença e da repetição como uma potência
afirmativa é por meio do artista que “[...] fala em nome de uma potência criadora,
apto a reverter todas as ordens e todas as representações, para afirmar a Diferença
no estado de revolução permanente do eterno retorno [...].” Cabe, então, ao poeta
mostrar, por meio da sua arte, que a repetição sempre traz arraigado em si um poder
transformador e de conceder novas significações, fazendo com que o “eterno retorno”
não se faça mediante a sofreguidão esvaziada, mas sim, como um ato de afirmação
da vida.
A repetição, por essa via, se modula também
como uma fonte transgressora eficaz, haja vista que se arrisca sempre em trazer
os discursos do passado, e, dessa forma, mostra que a linguagem, em seu caráter
suplementar, nunca está esgotada. E, por assim se configurar, em estado de inesgotamento,
demonstra que o dito sempre pode adquirir e apresentar outros matizes. [9] Na poética de Dal Farra, esse retorno,
a repetição, ocorre de modo reiterado, funcionando com a vontade de trazer outras
interpretações para textos clássicos, para a mulher e para os discursos historiográficos.
Ao longo da produção literária de Dal Farra,
essa relação dialógica vai se adensando. No Livro
de Possuídos, segundo título da escritora, essa interlocução com outros escritores
é mais intensificada, ao trazer em uma seção do livro um desejo de se comunicar
com os escritores da Antiguidade Clássica, [10] mais especificamente com o autor de Bucólicas, Virgílio. Nesse livro de 2002, uma parte da sua publicação
é composta por vergilianas (inclusive, o título da seção é, também, “Vergilianas”),
pois, a autora buscou lançar um olhar próximo ao de Virgílio para escrever seus
poemas que, em sua grande maioria, têm como títulos nomes de flores, frutas e legumes.
Vale salientar que essa relação com outros
autores na poética de Dal Farra, no Livro
de Possuídos, apesar de inicialmente parecer ter uma ligação estreita somente
com o poeta latino Virgílio, extrapola os limites desse escritor e convoca uma legião
de autores e textos para manter diálogos. Parte dos estudos desenvolvidos acerca
dessa extrapolação de ficcionistas na lírica de Dal Farra já foi estudada sob o
título Sob o signo da posse: o tramado interdiscursivo
na lírica de Maria Lúcia Dal Farra. [11]
O poema que abre a seção do livro supracitado
é “Vergiliana”, nesse poema, podemos encontrar um arranjo em “patchwork” de diferentes
excertos dos poemas bucólicos do poeta Virgílio. Não obstante, essa composição não
se modula de maneira a puxar os fios da lírica do poeta para a produção literária
da escritora de modo aleatório. Nesse texto poético, a arrumação objetiva conceder
um convite aos leitores que irão ingressar na leitura de seus poemas que apresentam
como tema motriz elementos da natureza. Essa convocação pode ser rastreada na primeira
estrofe da poesia que conclama: “Descansa comigo / sobre a folhagem nova! / Tenho
frutas maduras, castanhas assadas, / fartura de queijo. / Ao longe um telhado fumega.”
Esse ato de requisitar que o leitor se deite num cenário marcado pelo locus amoenus e compartilhe junto com a escritora
da fartura que o universo natural pode conceder é a tônica da poesia. Ressalta-se
que, nesse mesmo excerto, ocorre uma retomada de parte da “I Bucólica” vergiliana,
que trata de um diálogo entre dois pastores, Títiro e Melibeu, cujo problema centra-se
na perda de terras do primeiro. Diante da iminência de não ter onde se acolher,
gentilmente Melibeu oferta a sua estância para Títiro, o qual, por sua vez, aceita
o convite hospitaleiro.
Nas estrofes seguintes desse poema, Dal Farra
continua efetuando o seu processo de recorte e colagem de estrofes virgilianas com
vistas a compor o seu próprio texto poético. Na estrofe que segue, de tom mais metalinguístico,
a autora elege imagens para modelar como se processa o próprio mecanismo criativo,
leiamos: “Nem de arbustos e tamarindos / os poemas se fazem. / É certo que assim
verdejam / mas também em cinzas se convertem. / Elevemos o canto: falemos da grande
ordem, da totalidade das coisas, / dos anéis de Saturno / do menino que há pouco
nasceu.” Esse trecho, por sua vez, já captura os versos da “IV Bucólica” de Virgílio e trata da exposição do processo
criativo-literário da autora, o que não é pautado somente pelo fato da intuição
simplista, marcada pelo verdejar de poemas de maneira aleatória em uma página de
papel, motivada por inspirações unívocas. O ato de escrever perpassa por processos
em que a queima e o trabalho sejam efetuados de maneira constante – do verde passa
para o cinza por meio do trabalho intenso.
Desse modo, podemos falar, alinhados às reflexões
empreendidas por Walter Moser, que a produção literária de Dal Farra empreende uma
“reciclagem cultural”. Por esse caminho teórico, podemos validar que os procedimentos
efetuados pela escritora estão sendo encaminhados pelas seguintes palavras de ordem:
“[...] reinventar, revamper, pastichar, parodiar, reescrever, refabricar, retocar,
remanejar, reconfigurar, reutilizar [...]”. Segundo Moser, o que ele elege como
a pós-modernidade é marcado fundamentalmente como tendo em seus atributos o mecanismo
de reciclagem. Tomando essa palavra – a reciclagem – como o principal expoente da
sua teoria, aposta que o pensamento contemporâneo busca remanejar os objetos da
cultura, reutilizando-os e sempre dando uma nova roupagem aos discursos da tradição.
Moser (2012), atentando para os postulados
de Hegel, em que o filósofo já tinha alertado sobre os novos rumos que os artistas
viriam a perseguir na arte pós-romântica, considerou que estaríamos imersos em uma
era de reaproveitamentos e de “reusos”. [12]
Não somente nos estudos literários, no ambiente, nas relações com o espaço e nas
relações humanas de um modo geral. Observa-se, portanto, que esse movimento vem
cada vez mais sendo uma tônica fundamental para o nosso tempo. Mais especificamente
no campo das artes, a linha mestra será pautada pelo mecanismo de retomada dos discursos
da tradição literária e cultural. Em contrapartida, alerta-nos o estudioso que esse
procedimento de reciclagem não será uma simplória repetição de modo idêntico, mas
um retorno que se volte a recriar e dar novos significados aos discursos do passado
de modo crítico.
Acerca desse processo de apropriação que está
presente em sua produção literária, Dal Farra, no texto-depoimento, Minha poesia de mulher, informa-nos que:
Quando
denomino, por exemplo, meu segundo volume de poemas Livro de possuídos [grifo
da autora], estou sublinhando, certamente, com tal título, a maneira mais óbvia
através da qual toda poesia se faz, já que ela é, antes, possuída por aquilo de
que toma posse e ao qual se dedica. Penso ser da natureza da poesia, segundo experimento,
alinhar-se à saga daqueles amadores camonianos, daqueles que se transformam mutuamente
um no outro, na medida em que, de puro amor, se entregam. O que permite a tais amantes
que integrem um dos ramos mais canibalistas da família literária. Porque é próprio
da poesia acercar-se do objeto para se deixar tomar por ele, ao mesmo tempo em que
o captura e lhe confere outras dimensões.
Com essa fala, torna-se bastante elucidativo
o processo que a escrita de Dal Farra percorre nos seus poemas em o Livro de Possuídos, ao se apossar dos objetos
da cultura e, nesse procedimento, criar sua dicção poética. Sublinhamos, em destaque,
a fala final da escritora, quando ela afirma que o ato de se apossar faz com que
o objeto tomado como motivo para a criação literária adquira outras dimensões em
seu punho. Essa perspectiva indicada vai aportar nas reflexões de Moser, pois, em
concordância, ambos acreditam que o ato de apropriação não se dá por mero revival, mas sim, por meio de uma perspectiva
crítica que, sendo potente, tem a capacidade de conceder novas nuances para alguns
discursos incrustados em nossa história.
Nesse filão, é bastante notório que em toda
a seção “Vergilianas”, as frutas, árvores e legumes passam por um processo de cuidadosa
decantação quando são levados para a escrita de Maria Lúcia Dal Farra. Muitos desses
elementos, em nossa cultura, foram acondicionados em situação de margem por representar
o avesso, a malignidade e o que deve ser repudiado em nossa sociedade. Um dos desejos
da escritora ao trazer esses elementos é retirá-los dessa perspectiva e elevá-los
para outras leituras e chaves de interpretação. Para tanto, nesses poemas vergilianos,
Maria Lúcia se posiciona como uma sagaz pesquisadora e percorre vários textos que
tratam desses alimentos que são incorporados em sua poesia. Esses materiais percorrem
desde estudos de botânica, atravessando por estudos bíblicos, historiográficos e,
principalmente, literários. [13]
No texto “Caro leitor”, presente na abertura
do Livro de Possuídos, a escritora procede
com um esclarecimento sobre como foi a elaboração composicional das vergilianas.
Na sua fala, os poemas vergilianos passaram por um processo criativo distinto dos
demais textos que constituem a publicação, pois eles foram produzidos com base em
leituras de vários autores, principalmente Plínio, o Velho, para que pudesse compreender
sua “origem científica, sua história e mítica.”
Porém, é principalmente quando deseja investigar
as imagens desses frutos em outras literaturas que a autora decide por trazer um
conjunto de escritores e escritas para o seu próprio texto de modo similar a um
“enxerto” para que, através desse procedimento, subverta a ordem causalista que
nos indica que o discurso da tradição tem um lugar reservado ao estável. Para ela,
o que já foi proferido deve ser profanado pela contemporaneidade, deve-se, portanto,
instaurar, com isso, novas e outras potências discursivas.
Nesse processo, o poema “Maçã” segue por essa
trilha, ao colocar a fruta do “pecado original” sob o crivo do questionamento. O
fruto da macieira foi comumente visto como sendo a principal responsável pela desordem
no mundo, quando Eva, descrita de modo lascivo, deu o alimento a Adão (conforme
o mito bíblico). Além disso, a maçã foi a culpada pelo adormecimento da Branca de
Neve dos contos infantis, além de conduzir Hércules em empreitada pelas suas “onze
tarefas”. [14] Com essas leituras na
mão, Dal Farra traz, mediante o retorno dessas narrativas, outros pontos de vista
e novas possibilidades de interpretação para essa mesma fruta.
Na caligrafia de Dal Farra, a referida fruta
é metamorfoseada em um mistério que ela deseja desbravar através de salivas, dentes
e inteligência que poetiza. [15] A maçã,
ao ser relida por Dal Farra, é colocada na condição de fruta da liberdade, como
se, por meio dela, em vez do mero pecado que concebeu o mundo, pudessem ser descobertas
também as virtudes e acessadas um estado de ascese com relação às velhas leituras
pelas quais o fruto passou.
Por essa via, dormências são quebradas e a
devora do alimento com nuances de deleite acontece de modo intenso. A maçã que está
na mesa, tal qual a de Manuel Bandeira, [16]
que estava sozinha, acompanhada de um talher, em um quarto de hotel, faz com que,
conforme indica o verso final da poesia, o sujeito experimentador vá ao encontro
intencional do mal e de suas possibilidades: “Quero conhecer o mal e suas ramas.”
As reversões efetuadas por Maria Lúcia Dal
Farra, em sua literatura, amparam-se em não acatar as leituras tão consolidadas
em nosso imaginário acerca de algumas temáticas, principalmente aquelas que não
estão situadas nos ditos “grandes e representativos temas literários”. Por mais
que a maçã estivesse alocada na condição objetal de alimento, a sua representação
desencadeou uma série de interpretações que perpassam pelo preconceito e, muitas
vezes, por escamotear desejos e vontades de poder que se tornam questionáveis para
a poetisa. Nessa linha, a fruta da mulher Eva que destruiu um mundo cósmico e o
levou ao caos, para Dal Farra, não está colocada unicamente como sendo da ordem
do desertor, mas sim, como um fruto habilitado na mão da mulher como potencialidade
de acesso a outros mundos, outras possibilidades. Morder a fruta não é corromper
simploriamente uma ordem estabelecida, mas ofertar ao homem a possibilidade de poder
afirmar: “inicio um novo mundo”, com outras formatações, com outros pressupostos
e tendo antigas prerrogativas, tal como o lugar secundário da mulher na sociedade,
destituídos de sua ordem de soberania.
Para realizar tal intento, a escritora recorre
aos autores que já trataram da fruta num movimento de revisão. Trazer o outro não
significa aceitar passivamente as falas da tradição literária, mas significa a produção
de novas redes de significado. Por isso, apostamos na “alquimia das letras” como
um procedimento basilar para que a autora possa realizar os seus planos revisionistas,
pois, para o outro, o artista das letras, vir a se incorporar em suas poesias, ele
precisa passar pelos procedimentos alquímicos da autora que não estão situados no
paradigma químico dessa arte, mas, em verdade, através do trabalho literário e do
pensamento do escritor que não objetiva comungar passivamente da tradição, e sim
de compor novas orquestrações para a arte e para a cultura.
Conforme Deleuze: “[...] a repetição é a potência
da linguagem, e, em vez de explicar-se de maneira negativa, por uma deficiência
dos conceitos nominais, ela implica a ideia de uma poesia sempre excessiva.” Significa
dizer que repetir é essa força dotada de vida que encontra asilo, por exemplo, na
arte de Dal Farra. A poesia pode criar novos paradigmas para os discursos da tradição.
Além disso, para Deleuze, essa repetição está num movimento de se configurar como
sendo “cura” para o sujeito que a experimenta, pois: “[...] se a repetição nos torna
doentes, é também ela que nos cura; se ela nos aprisiona e destrói, é ainda ela
que nos liberta, dando, nos dois casos, o testemunho de sua potência ‘demoníaca’.
Toda cura é uma viagem ao fundo da repetição”. Para isso, repetir discursos mobiliza
no sujeito um desejo de se transformar e, do mesmo modo, transformar o outro. Construir
novos estatutos linguísticos, outras pontes de interpretação para o dito, é força
criadora, é vida que questiona.
Nesse limiar, o poema “Figueira” é feito no
sentido de mostrar que o vário e o diferente podem ter existência e viver em concomitância
no mesmo texto. No referido texto poético, a figueira, já desde a primeira estrofe,
é descrita por meio de três possibilidades genealógicas: a tradição da literatura
de Homero, os princípios mitológicos dos deuses olímpicos e os pressupostos da Bíblia
(em que a árvore do figo foi descrita nas suas primeiras páginas). Seguindo por
esse mesmo curso, traz-se, também, Buda, que, conforme os princípios budistas, alcançou
a sua revelação religiosa debaixo de uma figueira. Acresce-se a essa leitura, uma
mirada botânica para o vegetal que traz em sua anatomia um látex poderoso.
Essa construção poética objetiva romper com
a ordem que estabelece a vivência através de separações, do pensamento estanque
e da orquestração da experiência pela ordem da exclusão. O texto intenta, em verdade,
trazer as concepções “diferentes” e fazê-las conviver em um mesmo espaço, o do papel
– e da imaginação – em um mesmo texto. A visão budista, a mitológica, a cristã e
a científica podem ser tratadas pelo prisma da impossibilidade de entrecruzamentos
e de diálogos, não obstante, essas concepções encontram na poesia de Maria Lúcia
Dal Farra a possibilidade de se suplementarem e, juntas, comporem uma leitura para
um determinado objeto.
A poesia estampa na sua terceira estrofe os
seguintes versos: “Árvore do bem e do mal, / compete / (em bifurcadas ramas) / com
a macieira, / mas só tu a tudo ajuntas [...]”. Esse excerto mobiliza a eclosão da
lógica maniqueísta do bem e do mal e faz insurgir uma possibilidade de perceber
o mundo pelo ato de carregar em si o duplo (ou o múltiplo) que compõe a natureza
humana: dotado de atos ambivalentes, de bondade e maldade, potencializando, portanto,
com essa ação, a força da diferença que instaura o desejo no humano. A alquimia
preconiza, em seu curso, que “tudo que está em cima, está em baixo”, existindo,
nessa orientação, portanto, um desejo intrínseco de que as experiências no mundo
ocorram sem separações segregacionistas; existe uma vontade de trazer, ao plano
do convívio, o diverso. A diferença é, por esse caminho, “[...] objeto de afirmação,
ela própria é afirmação”.
Acrescido a isso, nota-se que, de modo consoante
às atuais perspectivas acerca dos estudos historiográficos, a poesia de Dal Farra
se interessa com particular interesse em problematizar como o discurso da história
não é uma enunciação fechada, senão pautada pelo princípio da ficcionalidade e da
reconstrução. Isso pode ser percebido quando capturamos as referências históricas
que a autora incorpora em suas poesias, pois, para ela, um eixo de explicação somente
não lhe interessa. Com isso, ela escolhe seguir por um princípio de permutações
ou de camadas simultâneas. Recorrer a somente uma fonte de explicação, do mesmo
modo, não lhe apraz. A pulsão principal do seu texto é mesclar referências, montando,
dessa forma, um mosaico de perspectivas analíticas.
Uma das principais vertentes de revisitação
dos discursos que estão entremeados na discursividade lírica dalfarreana, em “Vergilianas”,
é (dentre outras) acerca da mulher. A figura de Eva, por exemplo, no poema “Banana”,
é tomada como aquela que deseja sexo, ao ver a banana que é descascada pela serpente
no paraíso bíblico. De modo similar, no poema “Manga”, o fruto descascado é corpo
de mulher despudoradamente despido que deseja a entrega plena ao sexo. Com essas
colocações, os discursos que colocaram a mulher socialmente num campo do pudico
são modificados na poesia, pois o sujeito feminino adquire nuanças de sexualidade
despojada de pudores. A mulher escapa da história que a colocava submissa e assume,
nesses textos, um papel de sublime proeminência, construindo, pois, outras histórias
que foram intencionalmente solapadas no curso da humanidade.
Além disso, os discursos religiosos [17] que recorrentemente são suscitados na
poesia da escritora não aparecem pelo crivo da verdade, mas como uma possibilidade
de revisitação. As mulheres santas e as parábolas bíblicas não são retomadas por
meio de uma fonte irrefutável de veracidade, mas sim, como uma narrativa possível.
Narrativa essa que ainda pode ser manuseada, trabalhada, relida e apropriada. O
ato desmesurado enunciado em seus versos, cujo sujeito poético afirma de maneira
contumaz: “Ouso, caio, / começo de novo o mundo [...]” é o desejo pungente de não
se deixar acorrentar-se pelas produções discursivas que constituem o pensamento
de nosso mundo e de se tornar uma construtora de discursos outros também possíveis.
Ainda nos poemas da parte “Vergilianas”, o
texto “Coroa-de-Cristo” se apropria desta herbácea que tem como característica fenotípica
principal as cerdas espinhosas que recobrem a sua superfície. Por ter essa anatomia,
recebeu o nome do diadema que Jesus Cristo, em via crucis, recebeu para intensificar as suas dores, punições e sacrifícios.
Não obstante, o mote encontrado por Maria Lúcia Dal Farra para inquirir essa planta
não foi pelo caminho univocamente religioso. Ela percorre diferentes discursos,
tal como o popular, para adentrar e explicar a planta.
A coroa-de-cristo, explicada botanicamente,
apresenta nos tubos interiores do seu caule um látex que segue uma dupla explicação:
para alguns serve como substância curativa e, para outros, atua como um poderoso
veneno. Por assim se configurar, muitos se referem a ela como Barrabás (enquanto
poder destrutivo) e como Cristo (no seu poder de curar). Na primeira estrofe do
poema, sugere-se outra abordagem para a erva, e o sujeito poético questiona: “E
por que buscar / - justo na Bíblia - / subsídios para tais leitosas seivas, / sempre
venenosas?”. Portanto, objetiva-se romper com a ordem do aguardado no tocante ao
nome da planta, erigindo o olhar para outras discursividades, distintas da oficial.
Obedecendo a esse questionamento introduzido
na primeira estrofe do texto, a herbácea é explicada através de diferentes campos
do saber e, nesse poema, dentre os mais privilegiados, está o do discurso do saber
popular. Para adentrar nesse campo, os nomes diversos que foram dados à referida
planta são expostos: “sapatinho-de-judeu” e “sapato-do-diabo”, “cerca viva”, “crista
de galo” (dentre outros). Com isso, a coroa-de-cristo é tratada como sendo composta
por heterodoxias, ou seja, carrega em si sempre o múltiplo, o ambíguo e o diverso.
Essa diversidade está expressa desde os seus vários nomes, suas funções para o organismo
humano e as suas origens.
Para fechar a série de inconciliações, que
estão presentes no discurso sobre essa planta, a estrofe final do poema expressa:
“Como explicar (sem incesto) / que os dois-irmãos são bem-casados / e (sem preconceito)
/ que a coroa-de-cristo é o perverso // colchão-de-noiva?”. Nota-se que a construção
do poema não está pautada em buscar seguir um fluxo de interpretação e leitura unívoco.
Ele quer percorrer uma trilha que se espraie em múltiplas concepções, lidando com
as ambivalências, sem instaurar invalidações, mas acomodando em tensão essas diferenças
em seu próprio texto.
É lícito pensar, portanto, que o discurso
literário empreendido por Dal Farra não está unicamente relacionado ao tradicional
(o trivialmente aceito e problematizado em nossa sociedade). Em verdade, a autora
deseja trazer os discursos que estão soterrados, validar as expressões ditas como
sendo de “menor potência”, mérito de historicização, e elevá-los à condição de um
possível caminho crítico para descrever poeticamente os objetos em sua lírica. Possível
caminho, pois as duas interrogações que abrem a primeira e a última estrofe do texto
não estão colocadas de modo aleatório, é um sintoma de dúvida que revela de modo
pontual que os saberes para Dal Farra, assim como os discursos literários, históricos,
dentre outros, não estão hospedados na campana do irredutível da resposta absoluta,
porém, justamente o contrário, se localizam no espaço da pergunta, da dúvida e,
por sua vez, para as várias respostas que podem ser dadas através de variadas leituras.
Com isso, podemos pensar que os discursos
de diferentes áreas do saber que convivem emaranhados na poesia de Maria Lúcia Dal
Farra estão em diálogo com as “considerações intempestivas” anunciadas por Nietzsche.
Nesse livro, o filósofo denuncia quais são as maneiras pelas quais a sociedade vem
se relacionando com a história, muitas vezes, estandardizando algumas narrativas
em detrimento de outras. Mas, subjazido a isso, existem primordialmente vontades
de poder que realçam algumas histórias e heróis e, em contrapartida, apagam outros
fatos de igual relevância.
Para Nietzsche, na Segunda Consideração Intempestiva, a história foi analisada por três
principais claves em nosso pensamento, a saber: monumental, antiquária, e sugere
encará-la, principalmente, de modo crítico. [18]
Segundo o filósofo, a história crítica objetiva
se distanciar de olhares idólatras que comumente são lançados para os discursos
colocados como “fundadores” de uma determinada cultura. Não há mais um interesse
em promover uma (somente uma) narrativa como aquela que deve ser (muitas vezes cegamente)
seguida por um grupo. O que Nietzsche deseja é promover a força de vida, e, para
isso, é necessário deixar emergir outras potências discursivas, não se deixando
levar pela monotonia de “discursos singulares” para a nossa história. Poder de vida
é retirar vendas que nos direcionam para lugares desconhecidos, incômodos, e nos
fazer, assim, atravessar por rotas inusitadas, que nos façam aportar provisoriamente
em outras paisagens a que não estejamos acostumados, proporcionando, desse modo,
a insurreição constante de novas e outras narrativas.
Alerta-nos ainda o filósofo que “[...] a cultura
histórica só é efetivamente algo salutar e frutífero para o futuro em consequência
de uma nova e poderosa corrente de vida, [...], portanto, só se ela é dominada e
conduzida por uma força mais elevada e não quando ela mesma domina e conduz.”. Com
essa reflexão, sugere Nietzsche que é fundamental constantemente estarmos envolvidos
por correntes novas de história que sejam capazes de rearticular discursivamente
a sociedade, fundando sempre o lugar movediço da vivência histórica, capaz de ressignificar
velhos costumes e instaurar novos pontos de vista.
No tocante à escrita criativa de Dal Farra,
a história de caráter mutante (que se configura de modo inconformado) é o pressuposto
basilar da autora. Ela objetiva romper com o discurso da tradição, montando, por
meio de suas poesias, outras prerrogativas que deseja para a sociedade. Mune-se
da capacidade criativa da literatura para instaurar novas ordens de compreensão
para diferentes aspectos: mulher, ciência, sociedade e pensamento contemporâneo.
Essa pulsão se torna possível ao trazer o
outro, gestá-lo em sua escrita e aspergi-lo através da poesia. Essa alquimia das
letras, que já acontece desde o Livro de Auras,
perpassa pelo Livro de Possuídos e chega
em Alumbramentos com maior ênfase. As
nove seções desse livro possuem como título o nome de um artista com que ela objetiva
estabelecer diálogo. No campo da literatura, aparecem os nomes de Mariana Alcoforado,
Lorca, Anne Sexton e Rilke. Os autores se configuram nas páginas de suas poesias
como sendo uma fonte inesgotável de diálogo.
Ao darmos mais um salto para o seu livro de
poesias de 2017, Terceto para o fim dos tempos,
encontramos procedimentos similares, potentes e vários no que tange à sua relação
com outros artistas. O referido livro em sua temática central adentra no umbral
da morte, suas dores e dilacerações. Nas seções do livro – “Casa póstuma” e “Circo
de horrores” – somos apresentados às casas demolidas pela dor e pelo sentimento
de abandono que a morte acomete aos humanos. No título do livro “impossível não
ouvir [...] as letras que anunciam o milagre sonoro do memorável ‘Quarteto’ de Olivier
Messiaen”; isto já é suficiente para perceber e pontuar a recorrência que existe
na poética de Dal Farra com o seu elenco de escritores.
No Terceto
existe uma cena peculiar no tocante à poética de Dal Farra. Por mais que a sua temática
elegida – a morte – entre num terreno tão específico, ela não escapa da sua pulsão
de rapina, dialógica e de interlocução. No miolo da publicação, modulando-se como
um suspiro para os leitores que já adentraram nos quadros de dor que se propõe a
publicação, encontramos a seção: “Parque de diversões”. Nela é possível perceber
que a autora encontra sua zona de escape ou flutuação para as cicatrizes da morte.
Nesta parte, encontramos acalento, ouvido e troca. E os interlocutores escolhidos
vão pululando a cada texto poético: Artaud, Jorge de Lima, Fernando Pessoa, Beckett,
Herberto Helder, dentre tantos outros. Ao lado desses artistas, parece que Dal Farra
sustenta-se para ingressar no “Circo de horrores” da última seção de poesias do
seu livro.
No Banquete,
diálogo platônico, Socrátes e seus discípulos se reúnem para falar de amor. No título
deste artigo, o termo “banquete” aparece para alegorizar o diálogo que Dal Farra
estabelece desde os seus primeiros livros com uma legião de escritores criativos.
Nos pontos em que podemos cruzar os banquetes – de Platão e de Dal Farra – rastreamos
um ponto interseccional importante: o amor. É pela compreensão da força propulsora
deste sentimento que estão articulados os escritos de outros autores na produção dalfarreana. A crença de que na comunhão,
diálogo, reverência, respeito, troca, escuta e recriação, estão as diretrizes para
as experimentações da vida literária contemporânea. Ou, mais audaciosamente, diretrizes
para a vida, sem adjetivos, no seu sentido
mais amplo – na sua acepção mais vívida e pulsante.
NOTAS
1. A relação de Dal Farra com
Portugal se estabelece por várias vias, dentre elas, destacamos os seus estudos
acerca de escritores portugueses. Desses, se sobressaem os trabalhos realizados
sobre Florbela Espanca, produção que a consolidou como uma das maiores estudiosas
da obra da escritora alentejana, com livros e artigos publicados. Esse trabalho,
bem como os seus estudos sobre Herberto Helder e Vergílio Ferreira, encetados desde
1971, a fez estabelecer um forte vínculo com o país europeu, retornando constantemente
para participar de pesquisas, congressos e eventos literários.
2. A resenha intitulada Os “Íntimos”, Inês Pedrosa, de Maria Lúcia
Dal Farra, está disponível na Revista Colóquio.
3. Termo utilizado para pensar
que o diálogo intencional e declarado feito por Maria Lúcia Dal Farra com outros
escritores é recorrente. Repete-se ao ponto de pensarmos um traço da identidade
de sua escrita: uma espécie de caligrafia, portanto.
4. Terminologia adotada pelo
autor do presente artigo em sua tese de doutoramento: Caligrafias alquímicas: corpo e transmutação na lírica de Maria Lúcia Dal
Farra (2016), cuja aposta argumentativa central se pauta em defender que a escrita
de Dal Farra apresenta forte pulsão transformadora, seja dos objetos apropriados
em sua lírica, seja no caso deste estudo, como relação aos escritores da tradição
literária.
5. No Livro de Auras, essa vontade de expressar dialogismo com outros escritores
não aparece de modo declarado, com nomes em seções, como pode ser notado em seus
livros seguintes. O que existe é uma busca biográfica de acerto de contas com a
sua ancestralidade, com as reminiscências da infância e com experiências íntimas
do ambiente familiar. Não obstante, por mais que o fio condutor da coletânea seja
prioritariamente esse, encontramos aspergidos na publicação textos que pactuam diálogo
com outros autores.
6. Remetemos ao poema “Catar
feijão”, de João Cabral de Mello Neto. No referido texto, o autor efetua uma comparação
entre o processo de seleção do feijão na cozinha e o mecanismo cuidadoso que se
deve estabelecer no processo de escrita literária.
7. A disposição do título é
bastante emblemática para pensarmos o processo de apropriação efetuado por Dal Farra
nesse texto poético – logo abaixo do nome que intitula a poesia, entre parênteses,
encontra-se a reverência e a matriz de onde a autora segue para a construção de
sua poesia, a exemplo de: “(leitura de um poema de Rilke)”. O mesmo será feito com
a outra poesia que se comunica com Rilke, intitulada “A morte do meu pai”.
8. Transcrevemos o poema de
Rilke, traduzido por Augusto de Campos, para que seja possível notar o movimento
de apropriação efetuado por Maria Lúcia Dal Farra: “De tanto olhar as grades seu
olhar / esmoreceu e nada mais aferra / como se houvesse só grades na terra: / grades,
apenas grades para olhar. // A onda andante e flexível do seu vulto / em círculos
concêntricos decresce, / dança de força em torno a um ponto oculto / no qual um
grande impulso se arrefece. // De vez em quando o fecho da pupila / se abre em silêncio.
Uma imagem, então / na tensa paz dos músculos se instila / para morrer no coração.”
(RILKE, 2015, p. 12).
9. Para Deleuze: “Se a repetição
é possível, é por ser mais da ordem do milagre do que da lei. Ela é contra a lei:
contra a forma semelhante e o conteúdo equivalente da lei. Se a repetição pode ser
encontrada, mesmo na natureza, é em nome de uma potência que se afirma contra a
lei, que trabalha sob as leis, talvez superior às leis. [...] Sob todos os aspectos,
a repetição é a transgressão. Ela põe a lei em questão, denuncia seu caráter nominal
ou geral em proveito de uma realidade mais profunda e mais artística.” (DELEUZE,
1988, p. 12). Repetir, portanto, é colocar sob novo olhar as prerrogativas do passado.
10. Esse desejo de se comunicar
com escritores da Antiguidade Clássica está delineado em uma matéria publicada no
Jornal O Galo, do Rio Grande do Norte,
em 2000, dois anos antes do Livro de Possuídos
ser lançado. Na referida matéria, em entrevista, a escritora afirma o seguinte,
quando arguida sobre seus futuros projetos na área de ficção: numa parte do trabalho
“[...] procuro aprender com os antigos latinos, produzindo minhas próprias leituras
de seus poemas.” (DAL FARRA, 2000, p. 8). Essa vontade de manter uma relação interdiscursiva
com outros autores, como se vê nesse trecho da entrevista, acontece de modo intencional
em Dal Farra. Ainda na mesma edição do jornal, Dal Farra publica uma série de poemas
que viriam compor a sua futura publicação, dentre eles: “Árvore marinha”, leitura
de um poema de Catulo, que não foi publicado até então em nenhum livro édito da
autora. No entanto, o poema “Recomeço dos Tempos”, poema de abertura da seção intitulada
“Vergilianas”, vem ao lume do público. Nota-se, com isso, o descontrole que está
intrínseco aos projetos literários de um escritor, e como Maria Lúcia Dal Farra
procede em périplo de eleição de confrades literários em sua poesia.
11. Dissertação de Mestrado
defendida por Ivo Falcão da Silva no Programa de Pós-Graduação em Literatura e Cultura
do Instituto de Letras, da Universidade Federal da Bahia, em 2013.
12. Walter Moser, sustentado
nas postulações de Hegel, conclui que o nosso século será marcado por uma “[...]
disponibilidade radical dos materiais, dando lugar à sua ‘reciclagem’ pelos artistas
que não seguem senão a lei de sua genialidade arbitrária, e que procedem segundo
um princípio lúdico, valorizando o arbitrário, eis o regime estético que Hegel previu
para a arte pós-romântica.” (MOSER, 2012, p. 3).
13. Em análise desses poemas
que constituem a seção de poemas “Vergilianas”, podemos encontrar embutidos estudos
de Plínio, o Velho, sobre botânica, análises efetuadas por Câmara Cascudo, principalmente
em A história da alimentação no Brasil, além
de diversos escritores, tais como Frei Santa Rita Durão, Cecília Meirelles, Irmãos
Grimm, dentre outros.
14. Em conformidade com a mitologia
grega, uma das onze tarefas de Hércules era adentrar no Jardim de Hespérides e coletar
a maçã (ou pomo) de ouro. Porém, esta tarefa era um desafio, pois o jardim tinha
a severa vigilância do dragão Ládon. No entanto, Hércules vence o desafio e consegue
roubar a maçã.
15. Inteligência que poetiza
é um conceito expresso por Hugo Friedrich, em A estrutura da lírica moderna, em que acredita que o poeta moderno é
um articulador da linguagem, um artista que lida com as palavras. Com essa perspectiva
de Friedrich, a concepção de literatura mobilizada univocamente pela inspiração
é arejada pelo autor.
16. Referimo-nos ao poema “Maçã”,
de Manuel Bandeira, que é estudado no livro de Davi Arrigucci Júnior, Humildade, paixão e morte: a poesia de Manuel
Bandeira (1990).
17. Acreditamos que as referências
religiosas que perpassam as poesias de Maria Lúcia Dal Farra apresentam fortes traços
da lírica de Adélia Prado, que é uma das autoras das quais ela se apropria em seus
poemas. Acresce-se a esse ponto o desejo de olhar o mundo intencionalmente pela
ótica do feminino que, comumente, esteve acomodado em ouvir cânticos religiosos,
frequentar missas e posicionar o seu corpo intactamente fiel. Dal Farra, ao trazer
esses discursos religiosos, denuncia os espaços pelos quais as mulheres estiveram
sócio-historicamente alocadas, para que, mediante uma revisão crítica dessa história,
possamos posicionar essas mesmas mulheres em outras instâncias de poder. No entanto,
na poética da escritora é possível mapear a existência de um encantamento perante
os rituais católicos. A autora vive, portanto, no entremeio de denúncia e encantamento
com relação aos postulados cristãos presentes nos ritos dessa religião.
18. Em conformidade com Nietzsche,
a história monumental coloca os feitos do passado como ícones que precisam ser louvados
e “[...] sempre despertam novamente alguns que se sentem tão felizes considerando
a grandeza passada e fortalecidos através de sua contemplação.” (NIETZSCHE, 2003,
p. 19). Já na história antiquária, “[...] a história pertence em segundo lugar ao
que preserva e venera, àquele que olha para trás com fidelidade e amor para o lugar
de onde veio e onde se criou” (NIETZSCHE, 2003, p. 25). Para a perspectiva crítica,
cabe romper com essa inflexão louvadora do passado e, por meio de uma ação eficaz
em prol da vida, criar e ativar outras narrativas.
*****
IVO FALCÃO DA SILVA. Doutor e mestre em Literatura e Cultura pela
Universidade Federal da Bahia, é professor do quadro efetivo do Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (IFBA). Defendeu, no Mestrado, a dissertação:
Sob o signo da posse: o tramado interdiscursivo
na lírica de Maria Lúcia Dal Farra (2013) e, no Doutorado, a tese: Caligrafias alquímicas: corpo e transmutação
na lírica de Maria Lúcia Dal Farra (2016). Escreveu este ensaio especialmente
para Agulha Revista de Cultura.
*****
Agulha
Revista de Cultura
Número
114 | Junho de 2018
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo
& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe
de tradução
ALLAN
VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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