O desmoronamento das velhas crenças e das
velhas normas, que tendiam a fornecer aos homens um terreno de comum e permanente
acordo, tem imposto, cada vez mais, a exigência do esforço individual de pesquisa
e criação. Essa exigência não nasce de uma opção caprichosa, que se possa mudar
à vontade, e suas causas não se encontram no domínio estético, mas na própria situação
espiritual de nosso tempo.
Sérgio
Buarque de Holanda, 1952
Vejo tudo outra vez
Com uma nitidez que me cega
para o que há aqui.
Álvaro de Campos, Aniversário
I | Como o Terceto para o fim
dos tempos de Maria Lúcia Dal Farra já vem com manual de instruções (da própria
autora, do prefácio e da orelha), podemos avançar para as considerações decorrentes.
Isto significa que, para além de ler e reler o livro como um todo (poemas, epígrafes
etc.), é imperioso ouvir o Quarteto de
Messiaen (de preferência como sonoplastia para a leitura), pesquisar os poetas referidos
em todas as epígrafes e depois responder à pergunta que o conjunto como um todo
obriga a enunciar.
As
considerações que seguem pretendem colaborar para a empreitada que, como veremos,
não é para menores de idade. Está dado o aviso: tirem as crianças da sala!
II | Maria
Lúcia Dal Farra expõe seus temas na primeira parte do seu Terceto avisando que papel e caligrafia são o “campo do desespero”.
Leia-se: aqui se trata de experiência de “alma atormentada” e devidamente ruminada
transposta em poesia.
Esta
consciência de poeta funciona como freio (também para o leitor). Às vezes o distanciamento
chega às raias do riso, incorporando um humor altamente produtivo (mesmo quando
na categoria do humor negro – que me perdoem os militantes do politicamente correto
no plano das palavras; ainda não tive acesso à expressão atualizada), pois é também
de inventário de perdas que se trata. Neste capítulo, a memória resgata até mesmo comilanças, bebedeiras e vômitos, bem como quedas (físicas e morais) que remetem a contas a serem prestadas no Juízo Final. O contrário também cabe, no voo das telhas ou nos voos involuntários provocados por amores e paralelepípedos que desequilibram os pés.
de inventário de perdas que se trata. Neste capítulo, a memória resgata até mesmo comilanças, bebedeiras e vômitos, bem como quedas (físicas e morais) que remetem a contas a serem prestadas no Juízo Final. O contrário também cabe, no voo das telhas ou nos voos involuntários provocados por amores e paralelepípedos que desequilibram os pés.
Prometo
que não vou me prevalecer da condição de conterrânea da poetisa, com conhecimento
de todas as paisagens (e mais algumas) reconstituídas nestes poemas. Mas posso afirmar
que o voo-mergulho na cena de província e nos ambientes domésticos resulta em inventário
sem clemência de amores levados às últimas consequências, rancores e ambientes/ambientações
que a memória não deixa apagar (não desapega, como se diz ultimamente): religiosidade
tridentinamente encenada em oratórios, velórios, exéquias, flores, odores e demais
perdas que se acumulam.
Ao
final do movimento, emerge o tema da vida que teima, que persiste, que aponta para
o voo renovado dos passarinhos, ainda com medo do voo mas que já cantam (ah, saudade
do vô Angelino!).
O
andamento largo deste primeiro movimento
(com algumas acelerações esparsas) não dá margem a dúvida: está concluído (Freud
diria bem sucedido) o trabalho do luto, com o apoio muitíssimo bem vindo encontrado
na poesia (Herberto Helder, Eliot...), na pintura (Magritte), no cinema (Buñuel
do Cão andaluz presente no poema “Visita
à casa paterna”, onde temos até canivete aberto apontado para os olhos), na pintura
com música (cf. o magrittiano “Teclado no ar”).
III | Quando
chegamos ao Parque de diversões – segundo
movimento do nosso Terceto – o andamento
passa para uma espécie de allegretto que
se alterna com o giocoso, mas de vez em
quando topamos com um ou outro scherzo.
Trata-se de outro tipo de inventário. Agora vem para o primeiro plano a colheita
na poesia moderna. Se no primeiro movimento as epígrafes anunciavam o tema central
(a casa) já tratado por Herberto Helder, Florbela Espanca, Adélia Prado, Carlos
Drummond de Andrade e Álvaro de Campos, agora entra em cena um esquadrão peso-pesado:
Murilo Mendes, Yona Wolach, Maria Pawliskowska-Jasnorzewska, Silvia Plath e Emily
Dickinson, sem prejuízo da permanência dos anteriores (em ritornelo?), sobretudo
Florbela e Pessoa, que receberão vozes imaginadas numa dramatização epistolar que
só poderia ocorrer à Maria Lúcia, configurada aqui como “editora” destas novas cartas
de Florbela (cuja voz filtra excertos de poemas e cartas do próprio Pessoa).
O
prólogo nos traz o Manuel Bandeira (do éter e da cocaína). Este eu lírico, diferente
do Bandeira, prefere Morfeu – o que traz o sono/sonho (a bênção, dona Ivone Lara!)
para liberar a brincadeira com as palavras. Encerrado o jogo, não é preciso “entender”
seu resultado. Bastam as lembranças de algumas cenas: torcer pelo dragão na luta
mitológico-lunática de São Jorge; o gafanhoto que responde à excomunhão [acreditem:
isto aconteceu mesmo, segundo Voltaire no Tratado
sobre a tolerância] cantando um salmo sangrento; a queda em Camões; o galo de
João Cabral; os gatos de Adília e os peixes de Clarice. Mas esgotar esta enumeração
estragaria a graça do parque de diversões. Como é inevitável, ele tem (na vida real
como na poesia) a sua parte sombria. Esta é enunciada pelas vozes das mulheres que
já compareceram. Vozes devidamente afinadas e concertadas pela maestrina que organizou
este verdadeiro coral sibilino e sinistro: nem São Francisco (onde todos os fãs
de Tony Bennett deixaram os corações), a da prisão de San Quentin, escapa.
Para
este parque, a teoria poética não deixa por menos: “fazer poesia é quebrar ovos,
saltar feito gato, se esborrachar no chão. E ainda por cima os circunflexos foram
revogados!”
Esta
farra (ops!) poética se encerra com as inesquecíveis cartas de Florbela a Pessoa,
mais a referência-analogia com o turista em Delfos: “sobre os meus versos passarão/
(distraídos)/ como eu diante destas ruínas.”
IV | Entrando
para o Circo de horrores, novos virgílios
são dantescamente convocados: Silvina Ocampo e Laura Riding. É Laura quem nos dá
a chave: “as mulheres têm fascínio por criar inocentes para que virem monstros”.
Só quem meditou sobre este oráculo leva a sério a hipótese mais ou menos oposta:
elas podem abortar.
Em
andamento que evolui de adágio para marcha fúnebre, ouviremos a voz das mulheres
alertando o mundo sobre o seu poder de liquidação. Mulheres sabem perfeitamente
do seu poder, mas só o exercem no miúdo – dos abortos aos partos que dão em monstros
(inclusive os desfigurados). Aqui temos a exposição macabra dos fetos conservados
em formol, como num laboratório espetacular. Só não vê quem não quer.
Mulheres
não costumam blasfemar, mas avisam que quem entende mesmo de transubstanciação (na
prática) são elas a cada geração de novo exemplar da espécie.
Aqui
poética é ameaça mesmo: “Quero que [meus lábios] me liberem os versos/ (defectivos,
relativos, abdominais)/ móveis nos dentes// na falange que dói ao escrever/ na faringe
que recolhe as inflexões imperativas/ (que eu nego)// mas que descem em cascata
pelo vômito.” (Ainda bem que esta carta de intenções foi devidamente precedida pelo
aviso sobre a disposição cada vez maior para as travessuras com as palavras...)
É
por isso que todo cuidado é pouco: multiplicam-se as cenas de gravidez clandestina
e de mais candidatos a aborto. O horizonte é mesmo o suicídio (o de Sylvia Plath,
por favor!): o regime patriarcal sabe que o suicídio da mulher/matriz é perda incalculável.
A
retomada do tema do oráculo de Delfos – já próxima ao final desta viagem pelo circo
de horrores – reafirma o leitmotiv da composição como um todo: “minha escrita é
máquina de indução ao erro// garatujas, arremedo sibilino.”
Um
último aviso aos navegantes: há um inseto pousado no livro; ele só pode ser arrancado
com pinça.
CODA | Como
já ficou dito, o prólogo avisou que há um parentesco entre este livro e o Quarteto de Messiaen. Não é má ideia ouvir
de novo e de novo aquela obra para ouvir o diálogo que este livro estabelece com
ela. Como ele acrescenta novos materiais àquela condensação de uma das maiores catástrofes
já vistas pela humanidade (a segunda guerra mundial e os campos de prisioneiros),
o novo conteúdo dá um passo adiante: se as coisas prosseguirem na batida captada
pelas mulheres que sentem formigueiros em turbilhão e colmeias em ebulição, não
há de passar muito mais tempo até que elas executem a sentença que já condenou a
civilização patriarcal. E o alerta vem sendo feito desde pelo menos a poesia de
Emily Dickinson.
O
Anjo exterminador (Buñuel de novo) encena
uma situação em que burgueses e alpinistas sociais estão irremediavelmente presos
para sempre num salão de festas. Todos asfixiados, são cobaias de um experimento
macabro. A irracionalidade é total. Assim como já ocorrera no Cão andaluz, todos os tipos de tartufismo
conservador são por assim dizer examinados. É deste Anjo a figura que o livro convoca
em mais de uma oportunidade. Vale a pena elaborar as correlações, que aqui ficaram
apenas indicadas.
Para
encerrar, uma curiosidade. O terceiro movimento do livro corresponde no fundo e
na forma ao sexto movimento do Quarteto
de Messiaen. Inclusive o fortissimo em
uníssono com suas Trombetas do Apocalipse. (Aos desmemoriados, convém lembrar que
os movimentos sétimo e oitavo do Quarteto
anunciam com certo otimismo a redenção...). Já em nosso Terceto, em chave apocalíptica, o eu lírico se dá o direito de se identificar
com o Anjo Exterminador acima referido e por isso se transmuta em eu épico, o seu
exato oposto. Isto também dá o que pensar.
*****
INÁ CAMARGO COSTA. Professora-Assistente-Doutora aposentada
do Departamento de Teoria Literária da Universidade de São Paulo, autora de diversos
estudos sobre teatro brasileiro e reconhecida pesquisadora
internacional da obra de Bertold Brecht. Escreveu este artigo especialmente para
a Agulha Revista de Cultura.
*****
Agulha
Revista de Cultura
Número
114 | Junho de 2018
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
logo
& design | FLORIANO MARTINS
revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
equipe
de tradução
ALLAN
VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
os
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