segunda-feira, 4 de junho de 2018

INÁ CAMARGO COSTA | Terceto para o fim dos tempos, de Maria Lúcia Dal Farra



O desmoronamento das velhas crenças e das velhas normas, que tendiam a fornecer aos homens um terreno de comum e permanente acordo, tem imposto, cada vez mais, a exigência do esforço individual de pesquisa e criação. Essa exigência não nasce de uma opção caprichosa, que se possa mudar à vontade, e suas causas não se encontram no domínio estético, mas na própria situação espiritual de nosso tempo.

Sérgio Buarque de Holanda, 1952

Vejo tudo outra vez
Com uma nitidez que me cega para o que há aqui.

Álvaro de Campos, Aniversário

I | Como o Terceto para o fim dos tempos de Maria Lúcia Dal Farra já vem com manual de instruções (da própria autora, do prefácio e da orelha), podemos avançar para as considerações decorrentes. Isto significa que, para além de ler e reler o livro como um todo (poemas, epígrafes etc.), é imperioso ouvir o Quarteto de Messiaen (de preferência como sonoplastia para a leitura), pesquisar os poetas referidos em todas as epígrafes e depois responder à pergunta que o conjunto como um todo obriga a enunciar.
As considerações que seguem pretendem colaborar para a empreitada que, como veremos, não é para menores de idade. Está dado o aviso: tirem as crianças da sala!

II | Maria Lúcia Dal Farra expõe seus temas na primeira parte do seu Terceto avisando que papel e caligrafia são o “campo do desespero”. Leia-se: aqui se trata de experiência de “alma atormentada” e devidamente ruminada transposta em poesia.
Esta consciência de poeta funciona como freio (também para o leitor). Às vezes o distanciamento chega às raias do riso, incorporando um humor altamente produtivo (mesmo quando na categoria do humor negro – que me perdoem os militantes do politicamente correto no plano das palavras; ainda não tive acesso à expressão atualizada), pois é também
de inventário de perdas que se trata. Neste capítulo, a memória resgata até mesmo comilanças, bebedeiras e vômitos, bem como quedas (físicas e morais) que remetem a contas a serem prestadas no Juízo Final. O contrário também cabe, no voo das telhas ou nos voos involuntários provocados por amores e paralelepípedos que desequilibram os pés.
Prometo que não vou me prevalecer da condição de conterrânea da poetisa, com conhecimento de todas as paisagens (e mais algumas) reconstituídas nestes poemas. Mas posso afirmar que o voo-mergulho na cena de província e nos ambientes domésticos resulta em inventário sem clemência de amores levados às últimas consequências, rancores e ambientes/ambientações que a memória não deixa apagar (não desapega, como se diz ultimamente): religiosidade tridentinamente encenada em oratórios, velórios, exéquias, flores, odores e demais perdas que se acumulam.
Ao final do movimento, emerge o tema da vida que teima, que persiste, que aponta para o voo renovado dos passarinhos, ainda com medo do voo mas que já cantam (ah, saudade do vô Angelino!).
O andamento largo deste primeiro movimento (com algumas acelerações esparsas) não dá margem a dúvida: está concluído (Freud diria bem sucedido) o trabalho do luto, com o apoio muitíssimo bem vindo encontrado na poesia (Herberto Helder, Eliot...), na pintura (Magritte), no cinema (Buñuel do Cão andaluz presente no poema “Visita à casa paterna”, onde temos até canivete aberto apontado para os olhos), na pintura com música (cf. o magrittiano “Teclado no ar”).


III | Quando chegamos ao Parque de diversões – segundo movimento do nosso Terceto – o andamento passa para uma espécie de allegretto que se alterna com o giocoso, mas de vez em quando topamos com um ou outro scherzo. Trata-se de outro tipo de inventário. Agora vem para o primeiro plano a colheita na poesia moderna. Se no primeiro movimento as epígrafes anunciavam o tema central (a casa) já tratado por Herberto Helder, Florbela Espanca, Adélia Prado, Carlos Drummond de Andrade e Álvaro de Campos, agora entra em cena um esquadrão peso-pesado: Murilo Mendes, Yona Wolach, Maria Pawliskowska-Jasnorzewska, Silvia Plath e Emily Dickinson, sem prejuízo da permanência dos anteriores (em ritornelo?), sobretudo Florbela e Pessoa, que receberão vozes imaginadas numa dramatização epistolar que só poderia ocorrer à Maria Lúcia, configurada aqui como “editora” destas novas cartas de Florbela (cuja voz filtra excertos de poemas e cartas do próprio Pessoa).
O prólogo nos traz o Manuel Bandeira (do éter e da cocaína). Este eu lírico, diferente do Bandeira, prefere Morfeu – o que traz o sono/sonho (a bênção, dona Ivone Lara!) para liberar a brincadeira com as palavras. Encerrado o jogo, não é preciso “entender” seu resultado. Bastam as lembranças de algumas cenas: torcer pelo dragão na luta mitológico-lunática de São Jorge; o gafanhoto que responde à excomunhão [acreditem: isto aconteceu mesmo, segundo Voltaire no Tratado sobre a tolerância] cantando um salmo sangrento; a queda em Camões; o galo de João Cabral; os gatos de Adília e os peixes de Clarice. Mas esgotar esta enumeração estragaria a graça do parque de diversões. Como é inevitável, ele tem (na vida real como na poesia) a sua parte sombria. Esta é enunciada pelas vozes das mulheres que já compareceram. Vozes devidamente afinadas e concertadas pela maestrina que organizou este verdadeiro coral sibilino e sinistro: nem São Francisco (onde todos os fãs de Tony Bennett deixaram os corações), a da prisão de San Quentin, escapa.
Para este parque, a teoria poética não deixa por menos: “fazer poesia é quebrar ovos, saltar feito gato, se esborrachar no chão. E ainda por cima os circunflexos foram revogados!”
Esta farra (ops!) poética se encerra com as inesquecíveis cartas de Florbela a Pessoa, mais a referência-analogia com o turista em Delfos: “sobre os meus versos passarão/ (distraídos)/ como eu diante destas ruínas.”

IV | Entrando para o Circo de horrores, novos virgílios são dantescamente convocados: Silvina Ocampo e Laura Riding. É Laura quem nos dá a chave: “as mulheres têm fascínio por criar inocentes para que virem monstros”. Só quem meditou sobre este oráculo leva a sério a hipótese mais ou menos oposta: elas podem abortar.
Em andamento que evolui de adágio para marcha fúnebre, ouviremos a voz das mulheres alertando o mundo sobre o seu poder de liquidação. Mulheres sabem perfeitamente do seu poder, mas só o exercem no miúdo – dos abortos aos partos que dão em monstros (inclusive os desfigurados). Aqui temos a exposição macabra dos fetos conservados em formol, como num laboratório espetacular. Só não vê quem não quer.
Mulheres não costumam blasfemar, mas avisam que quem entende mesmo de transubstanciação (na prática) são elas a cada geração de novo exemplar da espécie.


Mulheres-anfitriãs se submetem ao trato social patriarcalmente estabelecido. Mas na sala de visitas vez ou outra se percebem como elefantes capazes de se desviar da louça ou das luminárias. Ou então se projetam como um monstro que vai emergir daquele lago e acabar com a farra (ops!). Sem falar da tromba do elefante que se esparrama na mesa do festim. Sabem que não há reconhecimento da dignidade com que tentam levar a vida; são os ursos que recolherão o lixo da pseudo-convivência festiva de há muito malograda.
Aqui poética é ameaça mesmo: “Quero que [meus lábios] me liberem os versos/ (defectivos, relativos, abdominais)/ móveis nos dentes// na falange que dói ao escrever/ na faringe que recolhe as inflexões imperativas/ (que eu nego)// mas que descem em cascata pelo vômito.” (Ainda bem que esta carta de intenções foi devidamente precedida pelo aviso sobre a disposição cada vez maior para as travessuras com as palavras...)
É por isso que todo cuidado é pouco: multiplicam-se as cenas de gravidez clandestina e de mais candidatos a aborto. O horizonte é mesmo o suicídio (o de Sylvia Plath, por favor!): o regime patriarcal sabe que o suicídio da mulher/matriz é perda incalculável.
A retomada do tema do oráculo de Delfos – já próxima ao final desta viagem pelo circo de horrores – reafirma o leitmotiv da composição como um todo: “minha escrita é máquina de indução ao erro// garatujas, arremedo sibilino.”
Um último aviso aos navegantes: há um inseto pousado no livro; ele só pode ser arrancado com pinça.

CODA | Como já ficou dito, o prólogo avisou que há um parentesco entre este livro e o Quarteto de Messiaen. Não é má ideia ouvir de novo e de novo aquela obra para ouvir o diálogo que este livro estabelece com ela. Como ele acrescenta novos materiais àquela condensação de uma das maiores catástrofes já vistas pela humanidade (a segunda guerra mundial e os campos de prisioneiros), o novo conteúdo dá um passo adiante: se as coisas prosseguirem na batida captada pelas mulheres que sentem formigueiros em turbilhão e colmeias em ebulição, não há de passar muito mais tempo até que elas executem a sentença que já condenou a civilização patriarcal. E o alerta vem sendo feito desde pelo menos a poesia de Emily Dickinson.
O Anjo exterminador (Buñuel de novo) encena uma situação em que burgueses e alpinistas sociais estão irremediavelmente presos para sempre num salão de festas. Todos asfixiados, são cobaias de um experimento macabro. A irracionalidade é total. Assim como já ocorrera no Cão andaluz, todos os tipos de tartufismo conservador são por assim dizer examinados. É deste Anjo a figura que o livro convoca em mais de uma oportunidade. Vale a pena elaborar as correlações, que aqui ficaram apenas indicadas.
Para encerrar, uma curiosidade. O terceiro movimento do livro corresponde no fundo e na forma ao sexto movimento do Quarteto de Messiaen. Inclusive o fortissimo em uníssono com suas Trombetas do Apocalipse. (Aos desmemoriados, convém lembrar que os movimentos sétimo e oitavo do Quarteto anunciam com certo otimismo a redenção...). Já em nosso Terceto, em chave apocalíptica, o eu lírico se dá o direito de se identificar com o Anjo Exterminador acima referido e por isso se transmuta em eu épico, o seu exato oposto. Isto também dá o que pensar.

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INÁ CAMARGO COSTA. Professora-Assistente-Doutora aposentada do Departamento de Teoria Literária da Universidade de São Paulo, autora de diversos estudos sobre teatro brasileiro e reconhecida pesquisadora internacional da obra de Bertold Brecht. Escreveu este artigo especialmente para a Agulha Revista de Cultura.


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Agulha Revista de Cultura
Número 114 | Junho de 2018
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revisão de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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