A poesia como reduto de esplendor
e inspiração, embora tenha perdido muito do seu prestígio, nem mesmo na modernidade
foi inteiramente desacreditada, como provam Cecília Meireles e Jorge de Lima. Hoje,
esse lugar de esplendor, ocupa-o com destaque Maria Lúcia Dal Farra, que aos 67
anos lança “Alumbramentos”, seu terceiro volume de poemas. Não é por simples tributo
que uma evocação de Cecília e versos de “Invenção de Orfeu” estão presentes no livro.
Estes são apenas dois exemplos de uma ampla comunidade literária e artística que
inspira, no sentido mais elevado, a poesia de Maria Lúcia Dal Farra.
De seus livros anteriores,
ressurgem os lampejos pictóricos de Van Gogh e Gustav Klimt, versos de Herberto
Helder e Rilke, ressurge a força mítica das Parcas em sua urdidura do destino. Dal
Farra chama a este seu novo livro “palimpsestos ”,
e a si mesma se diz “passageira de lumes”, designação poética colhida de versos
antigos, que também deram origem ao título de seu livro de crônicas, “Inquilina
do Intervalo”, de 2005. Arrebatamento lírico e maturação reflexiva, capaz tanto
de análise como de síntese, partem de uma só energia fecundante que transmuda o
observador na coisa observada e o maravilhamento da poeta diante da natureza, de
um corpo ou de uma obra de arte, no poder do seu poema de maravilhar o outro. Como
na cópula da abelha com a orquídea de uma de suas “vergilianas”, do “Livro de Possuídos”,
sua poética é uma arte do acasalamento entre diferentes linguagens e sentidos, que
produz alquimicamente um novo sentido a que se pode dar o nome de sublime.
Em uma alegoria adotada desde
o século passado por comentaristas e pelo próprio Museu de Cluny como referência
para a interpretação das peças, cinco das seis tapeçarias representam os cinco sentidos.
A sexta tapeçaria, a mais exuberante e misteriosa do conjunto, sugere uma representação
do sentido da beleza da alma. Sobre esse elemento etéreo, Dal Farra diz em seu poema
“Cabala ”: “É o zero, é o três, é o quatro,
é o sete – é Deus./ É o mercúrio a seduzir o enxofre./ As plantas, e os animais,
e eu/ somos transpostos para outra esfera/ onde o prodígio da Grã-obra impera./
Licorne: cavalo solar – cavala”. A suntuosidade de flores, frutos e animais nesta
ilha solitária da tapeçaria, que traz em seu centro uma dama também ricamente vestida,
remonta ao esplendor dos poemas de “Alumbramentos”. A aventura que leva “da realidade
até o enigma”, à qual a autora certa vez se referiu ao tratar da poesia de Herberto
Helder em um de seus textos críticos, é ainda uma aventura que sua própria poesia
empreende, e que envolve uma ciência dos sentidos.
Pode-se admirar melhor esta
ciência em "vergilianas", poemas que investigam sensualmente a natureza,
penetrando, com todos os sentidos, árvores, plantas, flores e frutos, até chegar
a este sentido unificante do sublime. Esta síntese contempla sempre um elemento
enigmático, a "exalação de mistério" de quando se morde um fruto d'ouro , os "segredos amorosos de antanho" no ventre de
uma sequóia, o enigma de Proserpina nas sementes de uma romã, o tempo eterno que
um nenúfar salvaguarda, "no abrigo do guarda-chuva invertido/ onde Siddharta
alcança o nirvana", ou ainda, no caroço de um pêssego, "o espírito e o
enigma de sua árvore imortal".
Segredos de beleza e de morte
se alojam no simbolismo dessa poesia, mistérios do amor e do tempo no sumo da fruta
oferecida, pronta para ser devorada, tal como o artista se deixa devorar por sua
pintura, no poema “Velásquez pintando a infanta Margarida com as luzes e as sombras
da sua própria glória”: “Miúdo / (imperceptível )/ o pintor deu-lhe tudo/ (cores ,
formas, altivez, perfume)/ e se exauriu./ Em troca/ mudou-se nela/ passou-se para
a tela –/ não mais localizável naquela calle de Sevilha/ ou nalgum/ dos endereços
que frequentou./ Será a arte canibal?”. O artista devorado pela beleza, a beleza
devorada pela morte: vem dessa transmutação, pelo “milagre da escrita”, a imagem
de um jardim que, depois de parasitado pela lagarta, ressuscita em luz e cor “nas
borboletas (em seu engenho e arte)”. Vem também desta secreta alquimia o céu vermelho
de La dame à la licorne, “fundo picado
do sangue dos muitos dedos/ que lavraram a tapeçaria”.
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MARIANA IANELLI (São Paulo, 1979) é graduada
em Jornalismo, mestre em Literatura, poeta, contista, ensaísta, cronista e crítica
literária. Em 2008 recebeu o prêmio Fundação Bunge-Literatura (antigo Moinho Santista);
em 2011 obteve menção honrosa da Casa das Américas (Cuba) pelo livro Treva Alvorada. Sua obra é composta, além deste volume, de Trajetória de antes (1999), Duas
Chagas (2001), Passagens (2003), Fazer Silêncio (2005), Almádena (2007), O Amor e Depois (2012), Breves Anotações sobre um tigre (2013), Alberto Pucheu – Ciranda da Poesia (2013),
Tempo de Voltar (2016), tendo sido, por
quatro vezes, finalista do Prêmio Jabuti. A resenha original foi publicada no jornal
O Globo, Caderno Prosa, em 11 de agosto
de 2012.
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Agulha Revista de Cultura
Número 114 | Junho de 2018
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