segunda-feira, 4 de junho de 2018

FLORIANO MARTINS | Encontro com Maria Lúcia Dal Farra



Três expressivos livros de poemas – Alumbramos (2012), Livro de possuídos (2002) e Livro de auras (1994) – e o esplendor de uma poesia intrigante pela serenidade com que mergulha na reflexão do mundo que a habita, íntima e exteriormente. Maria Lúcia Dal Farra (1944) é uma sábia ausente da cena literária, sem que isto implique no desconhecimento de seus artifícios. Vivendo há anos em Sergipe, guiada por uma intensa sintonia com o cotidiano, seu espírito resplende aquele ensinamento alquímico evocado por Juan-Eduardo Cirlot, de que “em todo labor, mesmo no mais humilde, as virtudes se exercitam, o ânimo se tempera, o ser evolui”. Temperados justamente pela grandeza de sua humildade, nós nos sentamos para uma deliciosa conversa.

FM | Comecemos pelo alumbramento. Com quem dialoga a poesia de Maria Lúcia Dal Farra? Quais as fontes de teu alumbramento?

MLDF Essa história das luzes é uma mania antiga da minha poesia (sou leitora de Bandeira desde os tenros anos) e ao mesmo tempo uma tortura. Pra começar pelos fundamentos, ou seja, pelo meu corpo, tenho uma cegueira periódica que ocorre a partir de um ponto luminoso que se instaura no meu campo de visão sem mais nem menos, como se uma auréola muito poderosa crescesse da cabeça de uma Madonna medieval que se manifestasse na minha frente e se expandisse por toda a minha órbita visual, preenchendo-a. Fico então sem enxergar nada, a não ser essa potente luz (por muitos e longos minutos) até que ela atravesse de lado a lado a abóbada e cumpra o seu percurso. Como vê, encegueiramentos e alumbramentos são coisas do arco-da-velha na minha vida primária.
Mas não foi por isso que o meu primeiro volume de poemas chamou-se Livro de auras – se bem que entre corpo e espírito o elo seja tão cerrado que tudo se passe sem o nosso entendimento. Leitora de Walter Benjamin há tempos, eu buscava deliberada e desesperadamente (na década de 1990) lutar contra a histórica perda da aura (das coisas e do poeta) para encetar uma comunicação com o leitor que nos fizesse, a mim e a ele, reaver (para comungar) uma unicidade impossível. Era um esforço louco, baldado e urgente, num tempo em que o mundo que conhecia desabava: de um lado porque eu sofrera o mais duro golpe da existência; de outro, porque todos entrávamos na tal da pós-modernidade líquida e vertiginosa onde tudo já é outra coisa.
É verdade que isso vinha acontecendo paulatinamente na minha história subterrânea, porque antes de publicar tão tarde esse livro inaugural (aos 50 anos, em 1994), eu escrevera (desde muito cedo e ao longo da minha vida) sete outros que restavam e restam mudos e surdos – visto que não tocados por ninguém. Na carência de leitor, a minha poesia solitária parecia prestes a desembocar num ilegível absoluto, e foi assim que resolvi tomar, contra toda a evidência, aquele caminho para tentar falar com alguém. Abandonei tudo o que havia escrito até então e me botei na empreitada de escrever um novo livro (publicável) e que, em princípio, me salvaria. (Quem, se eu gritar, me atenderia nesse turbilhão de vozes?) Não me salvei e nem a ninguém; minha aura espatifou-se quando tentei levitar como os anjos de Rilke. Mas o esforço valeu.
A experiência de estraçalhamento me mostrou que talvez fosse mais seguro (pelo menos para ter chão aonde pisar) conversar mais cerradamente com os meus pares: os poetas mortos. Eles sempre foram os meus interlocutores, as obras com quem falo. De resto, para além deles, dirijo-me desde então a um elenco de pessoas com quem suponho estar entrando em diálogo (repare como os meus poemas são repletos de dedicatórias); e, depois, a toda a gente que bote os olhos em cima da minha escrita. O fato é que não tenho ilusões: possuo pouquíssimos leitores vivos, e isso é bom porque escrevo mesmo para alguns, sobretudo hoje que a medida é a massa.
A fonte do meu alumbramento é, pois, o outro; aquilo que o outro me traz de luz para qualquer tipo de conhecimento que possa realizar na escrita de um poema, quando tento desvendá-lo ou trazê-lo para mim.

FM | Há uma distinção possível entre o poeta e o poema?

MLDF Transforma-se o amador na coisa amada…

FM | Eu gostaria de me referir ao universo da crítica de poesia no Brasil, porém este universo é inexistente. Em seu lugar, o que temos, e muito ocasionalmente, são anotações dispersas, de cunho jornalístico, que tocam mais o pitoresco do que propriamente o essencial sempre que remetem a algum poeta. O ambiente de pesquisa acadêmica é igualmente desalentador. Evidente que não escrevemos para atender a essas vertentes. No entanto, cabe indagar: considerando os personagens envolvidos, quem não está desempenhando bem o seu papel?

MLDF De verdade mesmo escrevemos para ninguém, pelo menos para ninguém que nos ouça ou que nos leia – escrevemos sempre para quem ali não está e que, se estivesse, não se encontraria onde supomos que pudesse estar. A poesia nasce desse desencontro jamais resolvido e essa é a maneira de ela se projetar para adiante – porque procura aquele que ainda não há. A rigor, portanto, era bom que o crítico ocupasse esse lugar des-sabido e errático (pelo menos por alguns instantes) nem que fosse dentro da máscara de um “hypocrite lecteur” baudelaireano (que, aliás, nesta versão da modernidade, data pelo menos de 1848 – donde se vê que o espaço vazio é antigo).
Mas não dá para falar, a não ser raramente, em existência de crítica de poesia no nosso país, e desde há largos anos. Para referir minha experiência própria, desde muito jovem eu lia aquilo que se produzia no Brasil (e também lá fora) através do Suplemento Literário de Minas e do Estadão – mas esse mundo já acabou. Será que em algum lugar da internet isso ainda se asila? De que maneira? Vejo (algumas vezes) que blogueiros se conectam (intuitivamente, suponho) em algum poema que lhes cai nas mãos, e passam a exibi-lo e a dividi-lo com quem os visita. Creio que não saibam bem do que se trata. São (digamos) tocados por seu súbito raio de inusitado e o divulgam porque aquilo se afina de alguma maneira com eles, graças a esse raspão hipnótico com que o poema os fende. Quero crer (que mesmo assim minimamente) o senso crítico desse leitor transparece esbatido aí, mercê desse insight ocasional que fica embutido na sua escolha (implicitado nela), o que já é, nestes tempos de calamidade, pra lá de bom. Talvez seja por aí que a poesia faça o seu passe e avance para outro e outro leitor até que encontre aquele que a invente. Aliás, a minha poesia tem tido a alegria de conhecer alguns desses passageiros de lumes, sobretudo no meio acadêmico e junto a meus pares.
Acho, por outro lado, que a gente poderia, se quisesse, escrever aquilo que o mercado pede (tratar a obra como mercadoria) e então faríamos o maior sucesso, teríamos “críticas” condizentes e ganharíamos dinheiro. Mas pra quê? Para que andar na mão se a gente pode obter um prazer desmesurado seguindo em contrapelo? Para que ler Elisa Lucinda se se pode ler Cecília Meireles? A poesia só existe quando se coloca contra a linguagem que vigora, cavando frestas por onde significar outra coisa que ela mesma ainda nem sabe o que é. E só há um jeito de viver isso: no impasse. Porque não é só uma questão de contenda sempre armada entre o poema e o seu leitor. Mas de uma luta engalfinhada entre o que a poesia busca produzir e aquilo que suas leis de produção lhe permitem ou não ultrapassar enquanto fatores constitutivos da comunidade da qual ela emerge e com quem dialoga. Muito embora em trânsito permanente, esse mecanismo de mercado só sossega se domá-la, ávido por abocanhá-la como sua presa, pasteurizando-a em definitivo. Fugir desse sequestro, enfrentá-lo no texto, situa a poesia nesse impasse de que falo, pois que o ato poético, na impossibilidade do heroísmo que redundaria inócuo, não pode ceder à contraparte cínica contida no desejo de se realizar.
O fato é que, assim, o ato poético parece fadado ao suicídio. Porque manter-se nesse limiar beligerante e perigoso, em estado de periclitância entre um e outro valor, em equilíbrio para a criação de uma linguagem que, obrigada a fazer concessões, não as autentica – é o que parece ser o impossível e legítimo ofício do poeta contemporâneo. E o que solicita dele uma ação contraditória, uma absurda práxis que só pode exercer-se em oximoro.

FM | O Brasil sempre foi muito acanhado ou mesmo ausente em relação a um tipo de evento literário que surge em nosso continente nos anos 1960, os encontros internacionais de poetas. A legitimidade desses eventos expressou sempre uma forma de resistência. Quando surgem no Brasil tratam de atrelar-se à outra margem da tradição, adotando as perspectivas de mercado. O que era para ser característica de uma reação, entre nossos escritores e intelectuais, se torna a adoção de um festejo de mercado. É outro evento, muito revelador de uma cultura, não resta dúvida. E o mecanismo adotado, muito feliz, pouco a pouco está banindo os poetas.

MLDF Tenho participado dos festivais de poesia fora do Brasil, e são algo que nunca vira antes! Acorrem muitíssimos interessados que vêm para te ouvir nas praças, nas ruas, no carnaval, nas esquinas, nos mercados, nas universidades, enfim, em todo o canto, e pessoas que também querem dizer poemas, próprios ou alheios, e que participam do microfone aberto nas praças ao longo do evento. Não se trata de uma vitrine aonde a poesia de cada um é exposta, mas de uma autêntica confraternização, pois que nos ouvimos uns aos outros sem cessar, acompanhamos o trabalho alheio, papeamos, aprendemos às pampas e nos damos conta da força que temos. Somos muitos a resistir a quaisquer intempéries políticas, e essa aliança é fundamental e ritualiza a razão da nossa existência.
Só vi isso acontecer aqui no Brasil uma única vez, há muitos anos: foi no Festival de Poesia de Goiás Velho, e talvez tenha sido o derradeiro. Sim, a participação também era gratuita, como acontecia na Nicarágua, no México e no Peru. Estive neste ano em Paraty e reparei que muito embora tudo girasse em torno do Drummond havia apenas uma ou outra mesa de poetas, e uma delas bem localizada, aliás. A organização era perfeita e tudo era um espetáculo – de outra natureza, é verdade. Não que o homenageado não fosse lido inúmeras vezes nas sessões, discutido e priorizado – mas a poesia, tal como a conheço desses festivais além do Brasil, foi a grande ausente.

FM | A prosa e o verso. A distinção entre ambos era quase da mesma ordem do vertical e horizontal. Distinção irrefletida, pois os dois ambientes, na física e na literatura, podem remeter a seu inverso ou, em adorável expansão, à soma de suas matrizes, incluindo aí as invisíveis e rejeitadas. A criação determina a forma e não o contrário.

MLDF Bem, essa coisa do vertical e do horizontal pode ter alguma serventia como camisa-de-força que te obriga a te virar dentro de um espaço literário fechado como uma urna, a fim de te desafiar para ver do que você é capaz. Estou pensando numa forma fixa, no soneto. De um lado, ele lembra até uma prática à Poe, das mais tenebrosas, pois que é mais ou menos como estar sendo emparedado vivo; ou até à Florbela – os limites do claustro. Mas também remete a Sade, à prática masoquista das mais eficientes, já que desemboca numa tortura benfazeja. Ou então a um exercício de desporto, que é o que ocorre com o soneto estandardizado quando é feito fora do Classicismo. Você tem aquela medida imexível de decassílabos e tem de verrumar no mais longínquo do seu ser para conseguir expressar o que pretende dentro de um espartilho que não te permite qualquer movimento. E também tem isso: se descobrir (dentro dessa forma pré-moldada) do que a sua poesia é capaz, é já um baita avanço. Dialogar com essa forma para questioná-la no centro da sua própria medida é sempre muito instigante, porque te permite derretê-la dentro dela; encontrar enjambements interessantíssimos e acentuar o decassílabo de maneira enviesada, por exemplo. Aliás, pra que ser livre quando se pode ser tão vigorosamente aprisionado? E, afinal, não é assim que a tradição literária funciona para cada um de nós?! Para estar ali como um desafio a se vencer de dentro dela?
Já escrevi sonetos clássicos (que me arrebatam justo pelo que têm de interdito) e tenho feito sempre versos (se não contar um único livro de ficções). Tenho muita vontade de tentar um dia o chamado poema em prosa, tal como nos vem dos simbolistas.
Sobre a questão que me propõe tenho algo curioso a relatar. No tal Livro de auras há uma secção chamada “lição de casa”, onde eu buscava narrar as histórias familiares ou andar à volta delas. De todas as três partes, esse era o lugar que eu escolhera para comunicar alguma coisa ao leitor, no sentido de que a mensagem a passar prevalecia sobre o próprio fazer poético. E, de fato: escrevi 33 poemas sob tal tônica. Muito bem. Passados tempos – exatamente onze anos – publiquei o Inquilina do intervalo. Neste, retomava as mesmas histórias, só que desta feita em prosa. Era como se eu atestasse, assim, a insuficiência da poesia para tal fim. Ou, então, que o poder enigmático e transcendente desse real histórico ultrapassasse em muito a medida que eu lhe dera, e fosse necessário completar o meu “depoimento” por meio de um “outro” gênero. Você me entende? No caso, não sei se a necessidade era de facetar, de criar novos pontos-de-vista sobre cada enredo anterior (a fim de que eu os compreendesse melhor – e isso pressupõe um exercício outro, o de psicanálise), ou se eu não escolhera com acerto o meio condizente para tal conteúdo. Ou seja: era como se eu tivesse forçado a forma para que ela aceitasse aquilo que lhe era alheio. A poesia tem disso: ela não aceita ser “usada” – e parece que foi o que (bem ou mal) acabei por fazer, talvez porque exorbitei, talvez porque a coisa não fosse do âmbito do poético, mas (como suponho agora) do território do privado (mas o que não é?!), e a forma tivesse se insurgido contra mim… Não sei.
Mas (ao fim e ao cabo), como a gente sempre escreve sobre as mesmas coisas, ainda não sei se parei por ali ou se continuarei a tratar desses mesmos assuntos de modo a delucidar o que se passa. Uma coisa é certa – isso é uma fonte inefável. Ou será que é o nó que há entre prosa e verso que explicaria essa mais recente tentativa? Não tenho ainda uma posição e continuo a pensar no caso que estou dividindo com você.

FM | A poesia, independente da forma que buscamos ou encontramos para o poema, agrega um componente inesperado à relação, por mais que acreditemos, ao rever dado tema, que o mesmo impõe certa repetição. Evidente que há poetas que se repetem até mesmo quando tratam de assuntos distintos, uma espécie de cristalização do discurso que não é o mesmo que a definição de um estilo. Mas não estamos tratando dessas almas reiterativas. A linguagem poética, como qualquer outra, possui seus mecanismos, truques, ardis, e a experiência naturalmente nos leva a alcançar novos tons, variações inúmeras, a partir das mesmas matrizes. A mim, por exemplo, muito me atrai mesclar registros dentro de um mesmo poema. O dilema maior que encontro é essa deformação maniqueísta que se estabeleceu entre nós, digo, na lírica brasileira, limitando a criação a dois padrões opostos e desconexos entre si: a escrita a seco ou a inspirada. E ainda pior: tratando de dar à primeira uma primazia sobre a segunda. Se o engasgo perdura em aspecto tão irrisório, ainda hoje debatido – quando alguma forma de debate se verifica – como evidência relevante na criação, o
que esperar da compreensão dos vasos comunicantes entre prosa e verso? Recordo aqui, trazendo mais lenha para nossa adorável fogueira, uma observação de Antonin Artaud, quando se referia a Diego Rivera, mas dele dizendo algo que podemos trazer para o ambiente poético: “Quando não se tem o sentimento de uma força transcendente – na arte de pintar como também toda arte –, isto resulta em uma espécie de bloqueio da interpretação, em uma opacidade interior das formas”.

MLDF Você disse direitinho, Floriano. E adorei quando sublinha um dos nossos ocos atuais, pois que hoje nem mesmo “alguma forma de debate se verifica”. Acalentando, pois, mais um pouco a “nossa adorável fogueira”, acho que depois da alforria que o surrealismo nos deu, quando tudo indicava que a gente aqui na terrinha tinha ficado absolutamente livre para fazer entre as palavras o amor que elas bem quisessem manter entre si – eis que carnavalizamos uma luta corporal entre Eliot e Breton. Pois não é que vem essa história da primazia da poesia “objetiva” e cerebral sobre a inspirada? E, o que é pior, vem, como você bem repara, separando uma da outra, como se ambas fossem inconciliáveis e de mal, de cara virada uma para a outra. Não existe isso! Há um laço incessante entre ambas, algo entranhado e recíproco, pois que uma depende da outra, e a decisão de prevalência de uma sobre outra é apenas do específico poema em pauta. Eu vejo (pra falar de um dos chamados “representantes” de uma dessas alas) muitíssimo de inspiração em João Cabral, e mesmo de surrealismo – quem é que não vê? “Um cão vivo dentro do bolso”, um “cão sem plumas/ é quando uma árvore sem voz”, uma “úmida gengiva de espada”, “os gestos defuntos da lama” – isto só para lembrar o pra lá de sabido, o que está mais à mão na minha memória.
Até o Valéry, que é um dos padrinhos da poesia “pura”, abre brechas para a inspiração, quando trata do fazer poético, e isso já na sua célebre aula inaugural no College de France, em 1937. Quando aí ele refere o litígio total entre vários registros que são chamados a atuar simultaneamente na produção poética (por serem justo muito diversos entre si), o que nos pede, portanto, um rol de acomodações muito diferenciadas e sempre incompatíveis uma com a outra (domínio que, segundo ele, é apanágio do faber poeta), Valéry não deixa de sublinhar que (malgrado todo o controle que possamos manter sobre tais materiais) o poema, como todo ato do espírito, vem sempre acompanhado de “uma indeterminação mais ou menos sensível”, de um “indefinível”. Ora, qual é o nome desse fenômeno não compatível e que extrapola a nossa “destreza” (ou seja, como você diz, Floriano, os nossos “mecanismos, truques, ardis”), senão inspiração, senão acaso? Creio, por isso mesmo, que a palavra que designa “le hasard” do “coup de dés” do Mallarmé não seja outra que não essa. (Sobre o Valéry, não consigo deixar de comentar o meu constrangimento com o que me deparei outro dia, quando compulsava, na Biblioteca Nacional de Lisboa, um material sobre a ditadura salazarista. Eis senão quando topo com um livro sobre o Salazar, escrito por António Ferro que, além de ter sido contemporâneo da Florbela e diretor do terceiro número do Orpheu (que nunca veio à luz), foi também Secretário da Propaganda Nacional do Salazar. E quem faz a apresentação da dita obra? Nada mais nada menos que Paul Valéry!)
Retomemos, pois, a nossa conversa ao pé do fogo, Floriano. E convenhamos: aquilo que ocorre fortuitamente modificando a direção do que escrevíamos (quer estejamos emborcados na consciência super-desperta ou não) – que nome tem?! O Pessoa chama, a esse indefinível (creio que em 1934), de o “Homem de Porlock”, e isso a propósito do relato de Coleridge sobre a escrita do Kubla Kahn. O poema, nas mãos do romântico inglês, caminhava de um jeito, quando é interrompido pela chegada de um sujeito à sua casa (que vinha da aldeia vizinha), com um recado não sei das quantas. Esta suspensão da escrita muda em tudo o feitio do poema e o Pessoa passa a denominar a esse processo de desvio das intenções originais como “O homem de Porlock”. Quem é esse homem que vem de Porlock, senão o representante das musas? Pulando muitas etapas, mas só para constatar, vê-se, afinal, que o “je est un autre” rimbaudiano (que desemboca no “vidente”) é parente desde sempre desse “Homem” – não te parece?

FM | Evidente, pertence ao mesmo capítulo da alteridade. Interessante que menciones o António Ferro (1895-1956), um poeta português afeito ao aforismo. Em um ensaio meu sobre Carlos Drummond de Andrade, observo o impacto que este poeta provocou no brasileiro, quando se apresentou, em 1923, no Teatro Municipal, tocando bumbo e disparando sua propaganda poética: “A minha época sou eu”. Agora, além do mundo dos livros, qual outro ambiente artístico foi importante para a tua poesia?

MLDF O da música, das telas, da escultura, da dança, do teatro, do cinema, sem falar de um outro universo: o culturalmente feminino. Aquele que compreende a domesticidade, a casa e seus habitantes, os bichinhos todos de estimação, a culinária, a horta, o pomar, a mobília, os trabalhos manuais etc., etc. – enfim, tudo o que não tem importância canônica e que nunca foi alçado a objeto de atenção poética, e que, de certa maneira, pertence a uma jurisdição próxima (muito embora opaca) da “áurea mediocridade”.
Sou absolutamente sensível a toda a arte e fico arrebatada por ela, me deixando carregar por sua obnubilação, sem nunca saber do que se trata. Vou indo, e só, muito depois, é que me parece entender o que se passou e, geralmente, essa revelação ocorre dentro da feitura de um poema, como algo que me acode e que se desvela de repente. Daí reconheço o que vi e o que experimentei então, mas já agora de uma maneira outra, porque me surge inopinadamente como um puro instante fortuito de epifania – e não será isso a tal musa de que falávamos?!
Eu sempre estudei música, desde os 5 anos de idade, e, além de pianista, eu queria muito ser bailarina. Mas na minha infância não pude porque havia um preconceito danado a respeito dos professores: meu pai não deixou. Eu também queria ser cantora popular, mas de novo o preconceito não deixou. Vale a pena eu te contar, Floriano. Tinha 12 anos (mas eu afirmei ter 14, porque naquela altura era interdito para menores dessa idade) quando meu pai me levou para o programa de calouros do Ari Barroso, na TV Tupi da Rua das Palmeiras, em Sampa. O compositor gostou muito da minha voz e da minha conversa (ele entrevistava o candidato, queria saber como é que a gente era), e quis falar, depois do programa, com o meu pai, a quem praticamente exigiu que não me permitisse fazer “vida artística” porque aquilo não era coisa para “menina de família”. Contou vários casos para o meu pai, diante de mim, com certos circunlóquios e metáforas que traduzi razoavelmente bem. E, pronto, lá se foi mais uma vontade minha. Nessa altura eu fazia conservatório e tinha aulas com o José Eduardo Martins, o irmão do João Carlos (que andava pelo mundo em concertos). Nunca me esqueço: a primeira vez que vi o João Carlos Martins, fiquei tão nervosa que, na conversa, perguntei-lhe se algum dia ele iria dar aulas no “reservatório”… Mas já nesta altura a coisa complicava porque eu era várias: tinha descoberto a escrita da poesia e me dedicava a isso; queria ser concertista e também cantora (não mais de rádio!), e começava a estudar canto lírico com o Miguel Archerons (regente do Coral Paulistano do Teatro Municipal de SP). Continuei esses estudos, formei-me em piano, executava várias árias como soprano dramático, era solista, mas a dubiedade música/poesia ficava a cada vez mais notória. Imagine que, sendo pianista (na formatura tocaria o Concerto no. 1 de Beethoven, com a Orquestra do Teatro Municipal de São Paulo, sob a batuta do Tullio Colacioppo), compus, sob música do Maestro Miguel Izzo, a letra do hino do conservatório… E foi depois disso que passei a ter aulas com o Maestro Souza Lima (na casa de quem conheci de passagem a Tarsila, imagine!) e tudo parecia se encaminhar para uma bolsa de estudos fora do país e para uma carreira afim. Todavia, foi aí que entrou areia no pedaço e minha vida mudou de rumo. Eu vinha, há tempos, tendo aulas simultâneas com o Robert (Adolphe Léon Sylvain) Dierckx, um pianista dos mais extraordinários, um belga que tinha sido aluno de um aluno do Liszt (Arthur De Greef), escritor que recebera a Grande Croix de la Reigne Victoire, por sua atuação como paraquedista do Exército Inglês durante a Segunda Grande Guerra. O Dierckx era uma pessoa fascinante: improvisava ao piano e em seguida escrevia o que havia criado em música; em seguida, lia o que havia escrito e tocava aquilo, e, assim, permanentemente num diálogo incessante entre música e poesia, poesia e música. Anarquista, intelectual, grande leitor dos surrealistas, admirador do Magritte e do Delvaux (ele tinha um Picasso que ficava dependurado atrás da porta da toilette, diante do vaso sanitário, como se nada fosse…), questionador de absolutamente tudo, Dierckx não deixava pedra sobre pedra, e essa sua maneira de ser marcou-me por inteiro. Eu me lembro que, contra toda a evidência (e numa metodologia de vanguarda), ele botava uma partitura diante dos nossos olhos e pedia para que tocássemos o que ali não estava, ou seja, a armação harmônica que subjazia à peça, para, por fim, tocar a partitura que, assim, acaba por tornar-se consabida: era por dentro que a gente estudava a música (e a poesia e a vida). O fato de tê-lo frequentado e de ter-me decidido a fazer o curso de Letras (e aí topo com outro sujeito impossível, o José João Cury, que foi meu amado professor; e com o queridíssimo Antonio Candido, com Jorge de Sena e Adolfo Casais Monteiro – apenas!) foi me puxando muito mais para a literatura que para o piano e o canto. A ausência real dessa querida dupla inquieta na minha vida de hoje é um baita buraco (claro que toco e canto, mas agora em surdina). Todavia, quero crer que arrumei um jeito de fundi-la na minha poesia onde, de alguma maneira, fantasio que tanto o piano quanto o canto sobrevivem.
Há coisa de alguns anos atrás, um velho conhecido do meu pai chamou-me pra Botucatu para que gravasse as canções (sem partitura) do Angelino de Oliveira (autor de Tristeza do Jeca). Tenho que dizer que meu pai era muito amigo do Angelino e que eu, desde muito pequena, cantava com meu pai as composições dele, acompanhada por ele e por Zé Maria, seu parceiro. Ocorre que o Angelino era um boêmio por excelência (tocara com Catulo) e, muito embora gravado por Gastão Formenti e Paraguassu (na década de quarenta), nunca se preocupou em registrar patentes e daí por diante. Assim, quando ele faleceu em 1964, meu pai conseguiu publicar (ao menos) um libreto com as letras de suas melodias, visto que aquilo tudo ia se perder; depois, quando meu pai faleceu, eu e meu primo Zebba Dal Farra (grande violão), começamos (como herdeiros de oitiva de suas composições) a pôr em pauta a obra dele. Mas nessa altura vim para o Sergipe e interrompemos o trabalho, que ia ficar assim mesmo, a ver navios. Mas foi aí que, por esse golpe do destino, acabamos nós dois gravando, num final de semana, tudo aquilo que sabíamos do Angelino (em dois CDs, fora do comércio), que cumprem o papel a que nos destinamos: o de produzir um documento. Fiquei de bem com meu pai e com o Angelino, finalmente. Posso morrer sossegada porque aquilo está preservado. Creio que também essa sintonia subjaz à minha poesia.

FM | Como saltas de um poema a outro, querida?

MLDF Às vezes, Floriano, tomo um poema alheio e fico tentando responder aquilo que, segundo creio, ele pergunta. E isso que começa como um exercício de adivinhação vai caminhando e se torna independente daquilo que o suscitou. Vira, portanto, um poema meu que vasculha outros cantos daquilo que no outro encontrei, e que acaba por perder esse cordão umbilical, desaguando em outras vertentes que, às vezes, vou procurar elucidar pra mim mesma em outro e outro poema que faço a partir do que não aconteceu nesse.
Houve uma época em que eu resolvi invocar as musas, ainda que artificialmente. Decidi que iria escrever um poema por dia, custasse o que custasse. E fiz isso durante uns três meses seguidos. As criaturas resistiam muito, mas eu teimava e as sacrificava, se fosse o caso, até que saísse da minha ousadia alguma coisa. Queria me disciplinar, era isso. Queria recuperar uma familiaridade com a poesia que me parecia estar naquele momento meio esbatida e adormecida. E então eu ouvia uma música, via uma tela, abria uma página qualquer – e me obrigava a produzir um poema. Claro, deu isso em muitas drogas, mas, de repente, havia também um raro oásis, uma pequena coisa que me fazia bem.
Mas há o caso de poemas que me acorreram, que baixaram em mim e que precisei escrever sem determinação alguma. Por aí entendo muito bem aquelas histórias do Pessoa sobre o nascimento súbito dos heterônimos, de pé, escrevendo como um louco em cima daquela cômoda. E, claro, os jogos surrealistas todos. Lembro-me muito bem de um poema que “escrevi” (na verdade, apenas registrei) e que vinha absolutamente pronto. Depois de feito, ele me pareceu ser do Pessoa, e começava assim: “Há um enorme espaço no meu passo/ entre o que sou e o que passo a ser” e daí por diante. Nunca o publiquei, porque creio que foi escrito por interposta pessoa. Todavia, há um outro, cuja memória do registro trago muito viva em mim, pois que o escrevi aos prantos, e que é sobre a morte do meu pai. Esse me perturba à beça até hoje, a cada vez que o leio ou me lembro dele, porque não me parece um poema, mas apenas o testemunho de um fato, tal e qual, com detalhes que eu não conhecia e que só depois me contaram. E isso permanece espantoso para mim.
Então é assim, Floriano: escrever poesia é, no mínimo, uma proeza que nos bota em sintonia fina e perfeita com o ignoto mundo, num diapasão (surpreendente) com ondas paralelas e transversais e simultâneas e interseccionadas que pairam por aí e que a escrita capta e identifica. Vidência? Mediunidade? Sublimidade? Visita ao baixo mundo? Existência pra além do planeta? Ação, recuperação, futuração da realidade? Mergulho na miséria total? Visita ao inferno? Vida.  

FM | Essencialmente vida. O Fellini, certa vez comentando sobre o sentido histórico da criação, dizia que se tratava de uma perspectiva que não lhe agradava, resumindo de forma brilhante: “Olho para o cotidiano, enquanto estou vivo. O resto é especulação.” Mas quero aqui recordar o Georges Bataille: “Se rio agora, posso pagar por esse riso o preço de dores excessivas. Posso rir do fundo de uma miséria infinita. Posso rir igualmente bem mantido pela sorte.” Eu não creio em arte sem riso. Não creio na própria existência humana sem a capacidade de rir. O riso mata a moral em seu sentido mais patético, o do preconceito. E não há dano pior à espécie humana que o preconceito em relação ao riso. E nós, Maria Lúcia, que nos rimos tanto, de que nos rimos?

MLDF Penso, querido, que a gente ri para abrir aquilo que está fechado, para procurar nele um interstício por onde vê-lo com outra cara. O riso amplia a coisa, lhe dá novos matizes, mais substratos, atravessa-lhe a carne, descobre nela um foco de outros transtornos, um enviesamento, um jeito de desventrá-lo para reconstruí-lo melhor do que se apresentava. Na verdade, o riso rearranja a coisa, torna-a mais distante da dor que ela causa – a dor mata. Não confundir com alienação. O riso abre brechas, arcoiriza o objeto, arruma nele um leque de outras garantias e, graças a Deus, nos deixa de fora para observá-lo melhor a fim de que a gente possa sanar em nós o que incomoda e maltrata. O riso dá-nos uma sobrevida.
Floriano, em meio a tantas falcatruas, imposturas, delitos contra a inteligência, injustiças, arrogâncias – o que seria de nós, neste país, sem o riso?!

FM | Aqui eu digo como o Fellini: esta é uma perspectiva que não me agrada. Assim posto, o riso parece um recurso catártico dos brasileiros suportarem a si mesmos. Esquecemos algo?

MLDF Certamente. Daqui a pouquinho vamos nos recordar do tanto que esquecemos. Já agora mesmo me lembro que na minha vida de música/poesia conheci um violonista como nenhum: chamava-se Pedro Campos de Paula, piauiense, menino-prodígio desses que dão concerto aos 4 anos (com essa idade se apresentara no Teatro Amazonas) e arrebatam plateias. Além disso, ele era um talentosíssimo acompanhante que pulsava com o cantor, que improvisava enquanto a gente entoava, de modo que tudo se seguia de maneira vertiginosa e engendrada, num entendimento desconcertante. No tempo em que morou na Bahia, ele foi um dos primeiros acompanhantes da Maria Bethania. Quando o encontrei em Botucatu, para onde foi morar com a família na década de 1960, acabamos gravando um LP de 33 rotações (você sabe o que é isso, Floriano?!), mas só com composições de Vinicius e Jobim, Mário de Andrade, Jaime Ovalle, Hekel Tavares, Ari Barroso, Dolores Duran, Sílvio Caldas e Orestes Barbosa, do Francisco Alves (sobretudo uma valsa que diz “Coração, por que preferes/ amar a todas as mulheres/ no amor de uma só mulher?”). Esse violeiro era do tipo que não existe mais: você cantava num tom, mas não estava lá muito bom; precisava subir ou descer algo como um meio tom, coisa sempre complicada para quem toca. Mas com Pedro não tinha problema. Ele fazia esse milagre de transposição com os dedos (e sem, claro, a ajuda daquele objeto safado que prende as cordas para tal efeito) e já ia tocando a introdução no tom que fosse, espécie de anjo que nos fazia levitar. A ele, ao Dierckx, ao querido poeta Carlos de Oliveira (e à minha amada comadre Lúcia Wisnik) dediquei, em 1986, o meu Alquimia da linguagem, pois que os perdi a todos de uma vez só: baque bravo! Mas me lembrei de te contar do Pedro porque foi ele quem conseguiu publicar, de maneira inaugural, um poema meu. Foi no Jornal da Bahia no começo de 1960. Agora, a coisa incrível – e a poesia (só para completar o nosso pensamento anterior) é, como vê, Floriano, também o lugar das imantações. Conheci no Rio Grande do Norte, em 1999, um escritor que passei a admirar pela sabedoria e dignidade, por seu caráter irrepreensível, o Oswaldo Lamartine, grande conhecedor das coisas da terra (desde a maneira de identificar uma pegada até a arte dos ferros de gado, passando pelo tratamento das armas de pólvora e das brancas, e de muitas outras miudezas caídas em desuso). Ele tinha um sobrinho que era casado com uma médica, um pouco mais velha que eu, que conheci e passei a frequentar. E qual não é o espanto quando me dei conta de que ela conservava, nos seus guardados e como algo de muita estimação, o tal poema que o Pedro publicou na Bahia? A poesia tem as suas prestidigitações, não é, Floriano?


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FLORIANO MARTINS (Brasil, 1957). Poeta, ensaísta, tradutor e editor. Dirige a Agulha Revista de Cultura e a ARC Edições. Entrevista foi realizada em 2012.

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Agulha Revista de Cultura
Número 114 | Junho de 2018
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