segunda-feira, 4 de junho de 2018

CLAUDIO WILLER | Maria Lúcia Dal Farra: a poesia premiada



Atuação de um jurado doidão determinando o resultado na categoria ‘romance’ do prêmio Jabuti deste ano (não é assim que se faz, jurados não estão aí para derrubar concorrentes, porém para escolher os preferidos e depois reunirem-se civilizadamente e chegara um resultado – assim foi nas dezenas de ocasiões em que fui jurado em concursos – duplo erro dos organizadores, pela formação esdrúxula da comissão e pela ideia de pedir notas para as obras – isso se faz em prova de redação, não em concurso literário), enfim, a celeuma pôs em segundo plano a boa premiação de Maria Lúcia Dal Farra em poesia, por Alumbramentos.
Em 2007, escrevi um texto de apresentação de poemas dela, selecionados na revista colombiana Punto Seguido. Não está disponível on line. Por isso, reproduzo-o, para circular um pouco no meio digital. Voltarei a tratar dessa poeta (assunto não falta).
Todos os poemas desta seleção – assim como tudo o que já foi publicado em Livro de Auras e Livro de Possuídos – parecem falar de algo bem definido, especificado pelos títulos: um gato, quadros de Gustav Klimt e Van Gogh, a
maçã e a macieira, a manga, o boi no pasto, a mesa de trabalho da poeta, a voz de Maria Callas, a arte de Joan Miró lida pelo poema de João Cabral de Melo Neto. Representaria essa definição de temas, tão claramente indicados no título ou no corpo dos textos, um objetivismo ou imagismo, condensando descrições de coisas, cenas e obras de arte, assim presentificando-os?
Classificar desse modo os refinados poemas de Maria Lúcia Dal Farra é apenas parcialmente correto: tanto é que o merecido destaque a sua poesia, saudando seus dois livros como representando algo do melhor da poesia contemporânea brasileira, deve-se a críticos, apresentadores e leitores já haverem mostrado seu verdadeiro alcance. E até mesmo seus títulos, ao incluir auras, sugerindo que a experiência poética pode ser transe ou alucinação, e a possessão, entusiasmo ou embriaguez platônica, indicam que ela percorre outras dimensões da criação poética: poesia é, sim, apresentação de algo; mas ao mesmo tempo é experiência visionária. Talvez caiba falar em um intimismo manifesto e um misticismo de fundo em sua obra.
Para interpretar a presente seleção, talvez caiba remontar a Mallarmé, a seus breves poemas temáticos, mas que destroem o objeto, aquilo de que falam, para criar novos significados. Os dois conhecidos poemas sobre os leques (de Madame Mallarmé e Mademoiselle Mallarmé), por exemplo: onde o realista parnasiano procuraria oferecer a perfeita descrição poética daqueles leques, Mallarmé vai além: quer captar o movimento, pelo qual o leque é sempre outro, a não ser no vertiginoso momento quando se detém/ o espaço como um grande beijo. Busca o impossível, a fixação do instante, daquilo que, a cada momento, já desapareceu, deixou de ser.
Também nestes poemas aqui apresentados, Maria Lúcia Dal Farra quer fixar o impossível, o que o objeto não é: tornar presente o ausente, presentificar mistérios. O gato, feito de abstração, recusa-se a ser captado: é tão ágil que só pode ser escrito a contrapelo, como aquilo que fisicamente não é, uma telepática acrobacia. Promessa de sexo é paradoxal: texto sobre outro texto, porém não escrito, livro inexistente à mesa, pura virtualidade. A Noite estrelada do quadro com ciprestes
de Van Gogh é invadida pela luminosidade A Maçã à mesa também é outra, aquela, arquetípica, da árvore do Bem e do Mal, de cuja sombra a poeta não sairá, pois quer superar essa dicotomia. Jacob Böheme viu o cosmo em um prato de estanho: Maria Lúcia Dal Farra o vê em cebolas e mangas. Os qualificativos da voz de Maria Callas – terceiro olho, buraco negro – não são apenas metáforas, do tipo descritivo, porém revelações de analogias. O Retrato de Hermine Gallia nos fala de uma retratada ausente, representada pelas cascatas de rendas, vendavais de tules e ondas de plissados que a constituem e possibilitam lê-la: este e outros de seus poemas são comentários ou adendos à crítica de artes plásticas por Baudelaire, mostrando que um quadro é um sistema de relações, de harmonias, e não só a representação de um objeto.
Também no restante de sua obra, o tema e título do poema sempre vão transportar o leitor a outra coisa, estabelecendo relações mágicas entre a parte e o todo: em Casa, de Livro de auras, a mesa é memória de árvore, o assoalho revive seu tempo de floresta, e a permanência do passado coloca em cheque o presente: o arbusto cresce/ e engole a lâmpada elétrica.
Talvez seja até um caminho fácil de interpretação – sabendo que Maria Lúcia Dal Farra é autora de Alquimia da Linguagem, sobre a poesia de Herberto Helder, e de ensaios sobre hermetismo em Baudelaire e outros poetas – tomar como chave para a sua leitura um título como Receita Hermética, onde é reafirmado o princípio da analogia universal, das correspondências entre macrocosmo e microcosmo: a berinjela contém as navegações que a trouxeram a esta parte do mundo; seu preparo refaz, por isso, epopeias. Mais importante, e a propósito de suas referências ao naturalismo do Vergílio das Geórgicas, é lembrar que, para aqueles antigos, a poesia era mimese, imitação do real; porém de outra realidade, viva, povoada de deuses e de energia. É essa realidade que Maria Lúcia Dal Farra quer reinstaurar; por isso, declara, de modo reiterado, mas sem nunca repetir-se, que o poema é equivalente a uma operação de magia.

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CLAUDIO WILLER (São Paulo, 1940). Importante poeta brasileiro (1940) ligado ao Surrealismo e à Geração Beat, tem pós-doutorado pela USP, é tradutor e crítico literário, autor de vários e diversos títulos, dentre os quais os volumes de poesia: Anotações para um Apocalipse (1964); Dias circulares (1976); Jardins da Provocação (1981); Estranhas Experiências (2004); Poemas para leer en voz alta (2007); A verdadeira história do século 20 (2016). O texto reproduzido foi postado no Blog Claudio Willer em 25 de outubro de 2012 - https://claudiowiller.wordpress.com/2012/10/25/maria-lucia-dal-farra-a-poesia-premiada/.


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Agulha Revista de Cultura
Número 114 | Junho de 2018
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