Atuação de um jurado doidão determinando o resultado
na categoria ‘romance’ do prêmio Jabuti deste ano (não é assim que se faz, jurados
não estão aí para derrubar concorrentes, porém para escolher os preferidos e depois
reunirem-se civilizadamente e chegara um resultado – assim foi nas dezenas de ocasiões
em que fui jurado em concursos – duplo erro dos organizadores, pela formação esdrúxula
da comissão e pela ideia de pedir notas para as obras – isso se faz em prova de
redação, não em concurso literário), enfim, a celeuma pôs em segundo plano a boa
premiação de Maria Lúcia Dal Farra em poesia, por Alumbramentos.
Em 2007, escrevi um texto de apresentação de poemas dela, selecionados na
revista colombiana Punto Seguido. Não
está disponível on line. Por isso, reproduzo-o,
para circular um pouco no meio digital. Voltarei a tratar dessa poeta (assunto não
falta).
Todos os poemas desta seleção – assim como tudo o que já foi publicado em
Livro de Auras e Livro de Possuídos – parecem falar de algo bem definido, especificado
pelos títulos: um gato, quadros de Gustav Klimt e Van Gogh, a
maçã e a macieira, a manga, o boi no pasto, a mesa de trabalho da poeta, a voz de Maria Callas, a arte de Joan Miró lida pelo poema de João Cabral de Melo Neto. Representaria essa definição de temas, tão claramente indicados no título ou no corpo dos textos, um objetivismo ou imagismo, condensando descrições de coisas, cenas e obras de arte, assim presentificando-os?
maçã e a macieira, a manga, o boi no pasto, a mesa de trabalho da poeta, a voz de Maria Callas, a arte de Joan Miró lida pelo poema de João Cabral de Melo Neto. Representaria essa definição de temas, tão claramente indicados no título ou no corpo dos textos, um objetivismo ou imagismo, condensando descrições de coisas, cenas e obras de arte, assim presentificando-os?
Classificar desse modo os refinados poemas de Maria Lúcia Dal Farra é apenas
parcialmente correto: tanto é que o merecido destaque a sua poesia, saudando seus
dois livros como representando algo do melhor da poesia contemporânea brasileira,
deve-se a críticos, apresentadores e leitores já haverem mostrado seu verdadeiro
alcance. E até mesmo seus títulos, ao incluir auras, sugerindo que a experiência
poética pode ser transe ou alucinação, e a possessão, entusiasmo ou embriaguez platônica,
indicam que ela percorre outras dimensões da criação poética: poesia é, sim, apresentação
de algo; mas ao mesmo tempo é experiência visionária. Talvez caiba falar em um intimismo
manifesto e um misticismo de fundo em sua obra.
Para interpretar a presente seleção, talvez caiba remontar a Mallarmé, a
seus breves poemas temáticos, mas que destroem o objeto, aquilo de que falam, para
criar novos significados. Os dois conhecidos poemas sobre os leques (de Madame Mallarmé
e Mademoiselle Mallarmé), por exemplo: onde o realista parnasiano procuraria oferecer
a perfeita descrição poética daqueles leques, Mallarmé vai além: quer captar o movimento,
pelo qual o leque é sempre outro, a não ser no vertiginoso momento quando se detém/ o espaço como um grande beijo.
Busca o impossível, a fixação do instante, daquilo que, a cada momento, já desapareceu,
deixou de ser.
Também nestes poemas aqui apresentados, Maria Lúcia Dal Farra quer fixar
o impossível, o que o objeto não é: tornar presente o ausente, presentificar mistérios.
O gato, feito de abstração, recusa-se a ser captado: é tão ágil que só pode ser
escrito a contrapelo, como aquilo que
fisicamente não é, uma telepática acrobacia.
Promessa de sexo é paradoxal: texto sobre
outro texto, porém não escrito, livro inexistente à mesa, pura virtualidade. A Noite estrelada do quadro com ciprestes
de Van Gogh é invadida pela luminosidade A Maçã à mesa também é outra, aquela, arquetípica, da árvore do Bem e do Mal, de cuja sombra a poeta não sairá, pois quer superar essa dicotomia. Jacob Böheme viu o cosmo em um prato de estanho: Maria Lúcia Dal Farra o vê em cebolas e mangas. Os qualificativos da voz de Maria Callas – terceiro olho, buraco negro – não são apenas metáforas, do tipo descritivo, porém revelações de analogias. O Retrato de Hermine Gallia nos fala de uma retratada ausente, representada pelas cascatas de rendas, vendavais de tules e ondas de plissados que a constituem e possibilitam lê-la: este e outros de seus poemas são comentários ou adendos à crítica de artes plásticas por Baudelaire, mostrando que um quadro é um sistema de relações, de harmonias, e não só a representação de um objeto.
de Van Gogh é invadida pela luminosidade A Maçã à mesa também é outra, aquela, arquetípica, da árvore do Bem e do Mal, de cuja sombra a poeta não sairá, pois quer superar essa dicotomia. Jacob Böheme viu o cosmo em um prato de estanho: Maria Lúcia Dal Farra o vê em cebolas e mangas. Os qualificativos da voz de Maria Callas – terceiro olho, buraco negro – não são apenas metáforas, do tipo descritivo, porém revelações de analogias. O Retrato de Hermine Gallia nos fala de uma retratada ausente, representada pelas cascatas de rendas, vendavais de tules e ondas de plissados que a constituem e possibilitam lê-la: este e outros de seus poemas são comentários ou adendos à crítica de artes plásticas por Baudelaire, mostrando que um quadro é um sistema de relações, de harmonias, e não só a representação de um objeto.
Também no restante de sua obra, o tema e título do poema sempre vão transportar
o leitor a outra coisa, estabelecendo relações mágicas entre a parte e o todo: em
Casa, de Livro de auras, a mesa é memória
de árvore, o assoalho revive seu tempo de floresta, e a permanência do passado
coloca em cheque o presente: o arbusto cresce/
e engole a lâmpada elétrica.
Talvez seja até um caminho fácil de interpretação – sabendo que Maria Lúcia
Dal Farra é autora de Alquimia da Linguagem,
sobre a poesia de Herberto Helder, e de ensaios sobre hermetismo em Baudelaire e
outros poetas – tomar como chave para a sua leitura um título como Receita Hermética, onde é reafirmado o princípio
da analogia universal, das correspondências entre macrocosmo e microcosmo: a berinjela
contém as navegações que a trouxeram a esta parte do mundo; seu preparo refaz, por
isso, epopeias. Mais importante, e a propósito de suas referências ao naturalismo
do Vergílio das Geórgicas, é lembrar que,
para aqueles antigos, a poesia era mimese, imitação do real; porém de outra realidade,
viva, povoada de deuses e de energia. É essa realidade que Maria Lúcia Dal Farra
quer reinstaurar; por isso, declara, de modo reiterado, mas sem nunca repetir-se,
que o poema é equivalente a uma operação de magia.
*****
CLAUDIO WILLER (São Paulo, 1940). Importante
poeta brasileiro (1940) ligado ao Surrealismo e à Geração Beat, tem pós-doutorado
pela USP, é tradutor e crítico literário, autor de vários e diversos títulos, dentre
os quais os volumes de poesia: Anotações para
um Apocalipse (1964); Dias circulares
(1976); Jardins da Provocação (1981);
Estranhas Experiências (2004); Poemas para leer en voz alta (2007); A verdadeira história do século 20 (2016).
O texto reproduzido foi postado no Blog Claudio Willer em 25 de outubro de 2012
- https://claudiowiller.wordpress.com/2012/10/25/maria-lucia-dal-farra-a-poesia-premiada/.
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Agulha Revista de Cultura
Número 114 | Junho de 2018
editor geral | FLORIANO MARTINS
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SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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MARTINS
revisão de textos & difusão
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ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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