segunda-feira, 4 de junho de 2018

KALINA NARO GUIMARÃES | Imagens da seca em dois poemas de Maria Lúcia Dal Farra



SOBRE AURAS E ALUMBRAMENTOS | A lírica de Maria Lúcia Dal Farra situa-se na poesia contemporânea brasileira como uma voz misturada com o cotidiano – os eventos e os objetos miúdos geralmente negligenciados pelo sujeito submetido à ordem homogeneizada do mundo –, sob um recorte particularmente feminino, tendo em vista que sua percepção, recaindo nas coisas de mulher, é constituída por um processo de posse do mundo pelo eu lírico que, ao abrir seu ventre ao alheio, toma deste certas marcas, ao mesmo tempo em que lhe empresta novos sinais, advindo do fôlego desse sujeito receptivo capaz de hospedar o mundo, mas também de reagir aos olhos que lhe enternecem ou, de algum modo, lhe afrontam.
Tal atitude lírica retoma a experiência, a despeito da pertinente predição de Walter Benjamin, para quem “as ações da experiência estão em baixa”. De fato, a obra de Dal Farra responde à decadência da aura com um universo grávido de reconhecimento e de afetos, onde os viventes abrigam-se mutuamente, de modo a tentar a unidade desejada. Sobre isso, a poetisa comenta:

Leitora de Walter Benjamin há tempos, eu buscava deliberada e desesperadamente (na década de 1990) lutar contra a histórica perda da aura (das coisas e do poeta) para encetar uma comunicação com o leitor que nos fizesse, a mim e a ele, reaver (para comungar) uma unicidade impossível.

Na obra de Maria Lúcia Dal Farra, são inúmeros os poemas que, engendrando-se no instante de reconciliação [1] de que fala Adorno, lançam-se ao mundo, para trazê-lo, nas imagens e nos ritmos, ao corpo poético, alargado por essa porção que, agora, lhe integra, como se voltasse à casa que já fora, desde sempre, sua. Assim, a relação do sujeito lírico com as coisas é, sobretudo, de reconhecimento. Cada poema reencontra um espaço, um evento, um afeto, revelando, nisso, uma poesia desdobrável, [2] pois essa aproximação ocorre quando se indaga o que nas coisas é mistério – espaço indomável –, mas que a poesia teima em nomear, obviamente, não com o fim de prender ou fixar a estranheza, mas de, parindo-a na linguagem, compartilhar com os leitores a vida que, agora possuída pelo gesto poético, pode também afetar os outros homens.
É na crença da comunicabilidade humana e na poesia como espaço capaz de abrigar e de inspirar a convergência dos viventes que se inscreve a lírica dal farreana. Em outra ocasião salientei: “o sujeito lírico, ciente da unidade que pressente, prediz, nas semelhanças observadas, o mapa inteiro, signo da desejada humanidade. Portanto, credita-se um valor à poesia: avistar, a despeito do ritmo dissoluto, um tempo fertilizado de reciprocidade”. Esse tempo, enquanto bem significativo, precisa, para essa consciência poética, ser repartido com todos. Por conseguinte, a poesia de Maria Lúcia tenta situar os homens num tempo em comum, ao mesmo tempo em que recolhe a outridade – “o eu do diálogo no tu do monólogo”, segundo Octavio Paz, para compor seu universo lírico.
Alumbramentos, penúltimo livro dessa importante autora da poesia brasileira contemporânea, atualiza essa dupla atitude: acercando-se da arte em nove seções – Anne Sexton, Cinco sonetos para Mariana Alcoforado, Lorca, Dali, Van Gogh, Max Ernst, Rilke, Klimt, e La dame à la licorne –, a voz poética alcança o instante em que esse outro a habita, entregando-o ao mundo, por uma dicção lírica que, embora singular, não desfigura esse alheio, antes parece lhe devolver o que já era seu, a exemplo das obras anteriores da poetisa, sobretudo do Livro de Possuídos.
Os poemas enfeixados em cada uma dessas seções dialogam, obviamente, com os objetos culturais sugeridos em cada título. Contudo, apesar de reconhecermos a importância dessa relação intertextual, analisaremos os poemas Seca e Miragem sertaneja a partir de um viés comparativo, discutindo os modos como o sujeito lírico mobiliza as imagens da seca, seja para configurar um espaço de desolação humana, seja para investir na figuração da metapoesia. Na textualização desses espaços, os poemas, sem se desfazerem totalmente dos sinais da morte e do abandono, arrancam, em meio à experiência, a esperança e a possibilidade de um novo tempo, reanimando, por conseguinte, uma percepção e um tom proféticos ou messiânicos, para utilizarmos um termo caro à análise cultural empreendida por Walter Benjamin (1994). Observar a tensão configurada no lugar que morre, mas que, ao mesmo tempo, também se insinua para a vida, e situar essa relação nos significados da própria poética dal farreana são os objetivos principais desse artigo.

SECA: DESOLAÇÃO E RESISTÊNCIA NO ESPAÇO LÍRICO | Tematizando um dos grandes problemas da região nordestina, o poema Seca ocupa-se em erigir, para o leitor, um ambiente no qual acompanhamos, por um lado, o avanço inexorável da morte e, por outro, observamos a vida que tenta abortar esse plano de funda desolação. Para encenar essa luta, as espigas, as novilhas e os espinhos são flagrados no instante em que, morrendo com o espaço onde habitam, tentam reagir, de algum modo, à hostilidade do meio. Nessa perspectiva, a figuração poemática tem nessa tensão as vigas principais de sua estrutura discursiva. Vejamos o poema:

SECA

A Valéria Costa e Silva

Deste chão afadigado
só brotam
espigas murchas do desamparo
que
(aliás)
nada narram:
nem mesmo a angústia
no ventre da terra acumulada.
Apenas as novilhas insistem em mugir
mas são soluços alongados de míngua
crescendo num apogeu de estrondo
que esburaca o silêncio
e deixa ainda mais só
esta planície desmanchada em aridez.
Espinhos cutucariam o céu
se pudessem tocá-lo
ou às rentes aves que vigiam os pastos.
Mas sequer têm força
para pinicar o que os aflige.

O espaço desolador é construído no poema por vários recursos. Primeiramente, a seleção lexical efetuada converte o ambiente em lugar inabitável, por meio de substantivos e expressões adjetivas como: chão afadigado, espigas murchas do desamparo, a angústia no ventre, soluços alongados de míngua, planície desmanchada em aridez. As imagens articuladas por meio dessa nomeação expressam morte, silêncio e esgotamento. Esses sentidos são inflamados pela presença de advérbios negativos ou restritivos na primeira estrofe – , nada, nem, apenas –, constituindo um universo marcado pela carência, escassez e silêncio.
O paradigma de morte permanece na primeira estrofe, mesmo quando os versos tentam lembrar a vida. Há uma tentativa de afastar dos termos ou das expressões como brotam, narram, ventre, insistem em mugir a sua porção de esperança, para aprofundar ainda mais a devastação, na medida em que essa purgação linguística materializa, no âmbito estético, o ruir da própria vida. Neste contexto, desde o nascimento, as espigas marcham para a morte, corporificando-a em sua própria feição e na sua voz ausente. A falta de histórias para narrar parece predizer a extinção dos sinais dos viventes na terra, símbolo maior da morte. Na impossibilidade de transmitir a experiência, as novilhas insistem em mugir, no entanto, sem alterar esse quadro infértil. Contrariamente ao canto, voz que, tornada símbolo, conclama profeticamente outra ordem no poema Miragem sertaneja, conforme veremos adiante, temos no mugir dos animais um som que, ao invés de restabelecer alguma humanidade, animaliza ainda mais o ambiente, tornando mais improvável a resistência.
Todavia, enquanto força que se contrapõe ao presente hostil, ainda que no plano utópico do desejo, a resistência impede que os sujeitos confundam-se totalmente com o espaço que morre, lembrando-se da vida, ainda que de modo capenga. Das espigas que murcham sem nada dizer, às novilhas que insistem em mugir, temos constituída, embora precariamente, uma voz que não foi de todo apagada. Destarte, a partir do nono verso, o poema começa a criar certa expectativa de reação dos viventes contra a morte anunciada. Entretanto, esse terreno semeado é abolido pela conjunção mas, no décimo verso, quando o mugido das novilhas é descrito como soluços de míngua. Em seguida, nos versos finais, a ação capaz de convocar um novo tempo é, com o uso dos verbos no subjuntivo – cutucariam e pudessem – e com a presença do condicionante se, trazida para o plano da possibilidade, não da realização concreta.
Nesse cenário, o desejo de cutucar o céu ou de pinicar o que aflige é barrado pela ausência de poder: os espinhos não conseguem tocar o firmamento, nem têm força para isso. No entanto, se as condições concretas dos viventes não permitem sua existência plena, esta sobrevive negativamente no poema, quando, ao invés expressar mimeticamente o espaço desolador, o sujeito lírico prefere deixar pelo caminho vestígios de um tempo em porvir, caso pudesse ou se tivesse força para reagir àquilo a que se dobra no presente. Mesmo pejado de ruínas, persiste no espaço um apelo, resquício profundo das tentativas frustradas dos viventes, contra o conformismo e a destruição.
Num contexto em que a linguagem, enquanto matéria articulada na própria experiência, não fica imune à agonia dos viventes, encharcando a nomeação de padecimento; em que o espaço modificado pela seca transforma também os viventes em seres que murcham e definham, estendendo neles a sua própria devastação; em que, a despeito da catástrofe representada, escapa, da cena poética, um devaneio sugerido no jogo entre expectativa e frustração; em que o espaço que definha não é abandonado pelos viventes, que nele permanecem mesmo sob perigosa ameaça, ousando, ainda que como uma cisma, situar-se num tempo que, por enquanto, ainda não é seu; observamos uma poesia que, mesmo quando caminha em terras assoladas, procura nesse chão as fissuras pelas quais é possível ensaiar o amanhã. O sujeito lírico dal farreano assemelha-se, portanto, com o historiador benjaminiano para quem no presente, “como um ‘agora’”, se infiltram “estilhaços do messiânico”.

DA TARDE ESTURRICADA À DESEJÁVEL: PERCURSOS DA RESISTÊNCIA | Ao contrário de Seca que, ao se demorar na paisagem arrasada, percebe os viventes à imagem do tempo inóspito, o poema Miragem sertaneja é iniciado com o canto agressivo do galo que arranha e trinca a tarde esturricada. Neste poema, desde o primeiro verso, acompanhamos a vida tentando afirmar-se, a despeito do ambiente hostil. Aqui, observamos, de antemão, a força dos viventes cuja metáfora é a música persistente do galo, que entoa, nesse cacarejo, o futuro bendito. Ao contrário do galo cabralino, que não tece sozinho o amanhã, a ave sertaneja luta pacientemente contra a paisagem infecunda que, aos poucos, abandona sua feição antiga – esturricada, apoiada na ausência do vento, muro – para se conformar ao agudo concebido pelo galo. Vejamos o poema:

MIRAGEM SERTANEJA

A Teresa Cabãnas

O canto do galo arranha
a tarde esturricada –
mas a paisagem não se abala.
Apoiada na ausência do vento
e em calor cristalizada
ela é muro –
instantâneo vitral
trincado apenas pelo diamante do bico
no cacarejo reincidente.
Mas a fenda aberta entremostra uma outra tarde
– a desejável:
dilatada por voos de borboleta,
esgarçando-se em nuvens
que iludem os olhos
com coágulos de luz prontos a se debulharem.
De modo que a ave sacode o letargo
deixa a preguiça no ninho
e (eólico)
um novo canto ascende
– relampeja –
emprenhando com seu agudo
a chuva
que se despeja.


A ação do galo tem um efeito gradativo: arranha, aparentemente, sem nada abalar; trinca o vitral da tarde; abre uma fenda na paisagem, até seu canto, ao evocar a chuva, confundir-se com ela, convocando-a, já que ele, agora, relampeja, tal como a água que desaba na terra, antes, ressequida. O galo, assim como os seres do poema Seca, não é indiferente ao espaço agonizante, tanto que nele atua. Todavia, enquanto no primeiro poema, os viventes, apesar de tentarem contra o tempo árido, secam com o espaço que sonham em salvar; neste, o personagem possui sua força mais preservada. Portanto, em Seca, percebemos o cansaço e o esgotamento da terra e dos viventes, embora o desejo de um lugar fértil permaneça intacto; já no poema Miragem sertaneja, esse desejo se concretiza, ao menos em um plano mítico-poético.
Na gradação que marca a conquista do canto do galo, observamos o percurso da resistência, que se move entre perseverança e expectativa. Para Alfredo Bosi, “resistir é subsistir no eixo negativo que corre do passado para o presente; e é persistir no eixo instável do presente que se abre para o futuro”. Nos termos do poema, percebendo a terra inóspita e a imobilidade de seu estado – espaço estéril, abafado, é muro –, o galo afronta este presente com seu canto, na esperança de ver nascer um tempo fértil. Seu cacarejo é, portanto, profético, pois, desde o início e especialmente por meio da gradação no poema, observamos sinais da força do canto, antecipando e invocando o porvir: a chuva que se despeja.
A voz lírica marca, sobretudo, a ideia de passagem – da tarde esturricada à desejável; do cacarejo que apenas arranha ao canto que emprenha a chuva. O ambiente, impróprio à habitação e fechando-se em muro e calor, abre-se, pouco a pouco, à vida conservada no galo, que divide com o espaço aquilo que conseguiu preservar: o canto. Aqui, observamos que se o canto é esforço individual, a chuva, dilatada em borboletas e nuvens, é oferenda ao coletivo, tal como o poema. Essa outra tarde, a desejável, não surge como espaço seguro, a salvo do tempo e do mal. Ao contrário de uma feição definida e estável, ela se entremostra em nuvens e borboletas, que, por sua natureza, estão sempre em voo, movendo-se em percursos sempre possíveis de se desfazerem.
A certeza fica por conta apenas do cacarejo reincidente do galo, o que potencializa a ideia de resistência: mesmo sem grandes garantias de que o canto pode alguma coisa contra um contexto de tamanha desolação, o vivente arranha, trinca, abre e relampeja, e nessa gradação há um sujeito que faz o possível com as armas de que dispõe. À medida que o espaço se sensibiliza com o canto, acomodando-se a ele, o galo não doma o ambiente – isto pressuporia um sujeito iluminista, dono do saber e do poder –, mas transmuta-se nele, fazendo de seu corpo a morada da chuva, que, antes alheia, passa a ser matéria do seu próprio agudo.
Por fim, indicamos que o poema Miragem sertaneja também pode ser lido como uma metáfora do próprio fazer poético. As imagens em torno da aridez constituem a estranheza, o desafio ao qual se submete a voz lírica. A persistência do canto indica o trabalho perseverante do poeta que, afetado pelo que lhe cerca, empreende o árduo exercício de aproximação com o alheio. O encontro, porém, só ocorre quando esse outro se deixa também abalar, fazendo de si os caminhos daquele, numa relação mútua. É, pois, sobretudo nessa convergência, efeito da inabilidade do sujeito em ser indiferente às coisas, que nasce a poesia de Maria Lúcia Dal Farra.

NOTAS
1. “[...] a linguagem fala por si mesma apenas quando deixa de falar como algo alheio e se torna a própria voz do sujeito.” (Theodor Adorno).
2. Expressão que designa “uma laboriosa e contínua ação sobre a estrutura do poema, de forma que esta opera para que cada integrante que aí está abra-se para uma nova camada significativa, propiciando assim um adensamento de sentido” (Tereza Cabañas).

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KALINA NARO GUIMARÃES. Doutora em Estudos da Linguagem (UFRN). Professora do Departamento de Letras e Artes da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Este texto, no seu original, foi publicado no II Encontro Nacional e I Internacional de Linguística e Literatura, O Canto da Palavra. Garanhuns: Universidade de Pernambuco, 2013.


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Agulha Revista de Cultura
Número 114 | Junho de 2018
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