SOBRE
AURAS E ALUMBRAMENTOS | A lírica de Maria Lúcia Dal Farra situa-se na
poesia contemporânea brasileira como uma voz misturada com o cotidiano – os eventos
e os objetos miúdos geralmente negligenciados pelo sujeito submetido à ordem homogeneizada
do mundo –, sob um recorte particularmente feminino, tendo em vista que sua percepção,
recaindo nas coisas de mulher, é constituída por um processo de posse
do mundo pelo eu lírico que, ao abrir seu ventre ao alheio, toma deste certas
marcas, ao mesmo tempo em que lhe empresta novos sinais, advindo do fôlego desse
sujeito receptivo capaz de hospedar o mundo, mas também de reagir aos olhos que
lhe enternecem ou, de algum modo, lhe afrontam.
Tal atitude lírica
retoma a experiência, a despeito da pertinente predição de Walter Benjamin, para
quem “as ações da experiência estão em baixa”. De fato, a obra de Dal Farra responde
à decadência da aura com um universo grávido de reconhecimento e
de afetos, onde os viventes abrigam-se mutuamente, de modo a tentar a unidade desejada.
Sobre isso, a poetisa comenta:
Leitora de Walter Benjamin há tempos, eu buscava
deliberada e desesperadamente (na década de 1990) lutar contra a histórica perda
da aura (das coisas e do poeta) para encetar uma comunicação com o leitor que nos
fizesse, a mim e a ele, reaver (para comungar) uma unicidade impossível.
Na obra
de Maria Lúcia Dal Farra, são inúmeros os poemas que, engendrando-se no instante
de reconciliação [1] de que fala Adorno, lançam-se
ao mundo, para trazê-lo, nas imagens e nos ritmos, ao corpo poético, alargado por
essa porção que, agora, lhe integra, como se voltasse à casa que já fora, desde
sempre, sua. Assim, a relação do sujeito lírico com as coisas é, sobretudo, de reconhecimento.
Cada poema reencontra um espaço, um evento, um afeto, revelando, nisso, uma poesia
desdobrável, [2] pois essa aproximação ocorre quando se indaga o que nas coisas
é mistério – espaço indomável –, mas que a poesia teima em nomear, obviamente, não
com o fim de prender ou fixar a estranheza, mas de, parindo-a na linguagem, compartilhar
com os leitores a vida que, agora possuída pelo gesto poético, pode também afetar
os outros homens.
É na crença
da comunicabilidade humana e na poesia como espaço capaz de abrigar e de inspirar
a convergência dos viventes que se inscreve a lírica dal farreana. Em outra ocasião
salientei: “o sujeito lírico, ciente da unidade que pressente, prediz, nas semelhanças
observadas, o mapa inteiro, signo da desejada humanidade. Portanto, credita-se
um valor à poesia: avistar, a despeito do ritmo dissoluto, um tempo fertilizado
de reciprocidade”. Esse tempo, enquanto bem significativo, precisa, para essa consciência
poética, ser repartido com todos. Por conseguinte, a poesia de Maria Lúcia tenta
situar os homens num tempo em comum, ao mesmo tempo em que recolhe a outridade
– “o eu do diálogo no tu do monólogo”, segundo Octavio Paz, para
compor seu universo lírico.
Alumbramentos, penúltimo
livro dessa importante autora da poesia brasileira contemporânea, atualiza essa
dupla atitude: acercando-se da arte em nove seções – Anne Sexton, Cinco
sonetos para Mariana Alcoforado, Lorca, Dali, Van Gogh,
Max Ernst, Rilke, Klimt, e La dame à la licorne –, a
voz poética alcança o instante em que esse outro a habita, entregando-o ao mundo,
por uma dicção lírica que, embora singular, não desfigura esse alheio, antes parece
lhe devolver o que já era seu, a exemplo das obras anteriores da poetisa, sobretudo
do Livro de Possuídos.
Os poemas
enfeixados em cada uma dessas seções dialogam, obviamente, com os objetos culturais
sugeridos em cada título. Contudo, apesar de reconhecermos a importância dessa relação
intertextual, analisaremos os poemas Seca e Miragem sertaneja a partir
de um viés comparativo, discutindo os modos como o sujeito lírico mobiliza as imagens
da seca, seja para configurar um espaço de desolação humana, seja para investir
na figuração da metapoesia. Na textualização desses espaços, os poemas, sem se desfazerem
totalmente dos sinais da morte e do abandono, arrancam, em meio à experiência, a
esperança e a possibilidade de um novo tempo, reanimando, por conseguinte, uma percepção
e um tom proféticos ou messiânicos, para utilizarmos um termo caro à análise
cultural empreendida por Walter Benjamin (1994). Observar a tensão configurada no
lugar que morre, mas que, ao mesmo tempo, também se insinua para a vida, e situar
essa relação nos significados da própria poética dal farreana são os objetivos principais
desse artigo.
SECA: DESOLAÇÃO
E RESISTÊNCIA NO ESPAÇO LÍRICO | Tematizando um dos grandes problemas
da região nordestina, o poema Seca ocupa-se em erigir, para o leitor, um
ambiente no qual acompanhamos, por um lado, o avanço inexorável da morte e, por
outro, observamos a vida que tenta abortar esse plano de funda desolação. Para encenar
essa luta, as espigas, as novilhas e os espinhos são flagrados no instante em que,
morrendo com o espaço onde habitam, tentam reagir, de algum modo, à hostilidade
do meio. Nessa perspectiva, a figuração poemática tem nessa tensão as vigas principais
de sua estrutura discursiva. Vejamos o poema:
SECA
A Valéria
Costa e Silva
Deste chão afadigado
só brotam
espigas murchas do desamparo
que
(aliás)
nada narram:
nem mesmo a angústia
no ventre da terra acumulada.
Apenas as novilhas insistem em mugir
mas são soluços alongados de míngua
crescendo num apogeu de estrondo
que esburaca o silêncio
e deixa ainda mais só
esta planície desmanchada em aridez.
Espinhos cutucariam o céu
se pudessem tocá-lo
ou às rentes aves que vigiam os pastos.
Mas sequer têm força
para pinicar o que os aflige.
O espaço
desolador é construído no poema por vários recursos. Primeiramente, a seleção lexical
efetuada converte o ambiente em lugar inabitável, por meio de substantivos e expressões
adjetivas como: chão afadigado, espigas murchas do desamparo, a
angústia no ventre, soluços alongados de míngua, planície desmanchada em
aridez. As imagens articuladas por meio dessa nomeação expressam morte, silêncio
e esgotamento. Esses sentidos são inflamados pela presença de advérbios negativos
ou restritivos na primeira estrofe – só, nada, nem, apenas
–, constituindo um universo marcado pela carência, escassez e silêncio.
O paradigma
de morte permanece na primeira estrofe, mesmo quando os versos tentam lembrar a
vida. Há uma tentativa de afastar dos termos ou das expressões como brotam,
narram, ventre, insistem em mugir a sua porção de esperança,
para aprofundar ainda mais a devastação, na medida em que essa purgação linguística
materializa, no âmbito estético, o ruir da própria vida. Neste contexto, desde o
nascimento, as espigas marcham para a morte, corporificando-a em sua própria feição
e na sua voz ausente. A falta de histórias para narrar parece predizer a extinção
dos sinais dos viventes na terra, símbolo maior da morte. Na impossibilidade de
transmitir a experiência, as novilhas insistem em mugir, no entanto,
sem alterar esse quadro infértil. Contrariamente ao canto, voz que, tornada símbolo,
conclama profeticamente outra ordem no poema Miragem sertaneja, conforme
veremos adiante, temos no mugir dos animais um som que, ao invés de restabelecer
alguma humanidade, animaliza ainda mais o ambiente, tornando mais improvável a resistência.
Todavia,
enquanto força que se contrapõe ao presente hostil, ainda que no plano utópico do
desejo, a resistência impede que os sujeitos confundam-se totalmente com o espaço
que morre, lembrando-se da vida, ainda que de modo capenga. Das espigas que murcham
sem nada dizer, às novilhas que insistem em mugir, temos constituída, embora precariamente,
uma voz que não foi de todo apagada. Destarte, a partir do nono verso, o poema começa
a criar certa expectativa de reação dos viventes contra a morte anunciada. Entretanto,
esse terreno semeado é abolido pela conjunção mas, no décimo verso, quando
o mugido das novilhas é descrito como soluços de míngua. Em seguida, nos versos
finais, a ação capaz de convocar um novo tempo é, com o uso dos verbos no subjuntivo
– cutucariam e pudessem – e com a presença do condicionante se,
trazida para o plano da possibilidade, não da realização concreta.
Nesse cenário,
o desejo de cutucar o céu ou de pinicar o que aflige é barrado pela ausência de
poder: os espinhos não conseguem tocar o firmamento, nem têm força para isso. No
entanto, se as condições concretas dos viventes não permitem sua existência plena,
esta sobrevive negativamente no poema, quando, ao invés expressar mimeticamente
o espaço desolador, o sujeito lírico prefere deixar pelo caminho vestígios de um
tempo em porvir, caso pudesse ou se tivesse força para reagir àquilo a que se dobra
no presente. Mesmo pejado de ruínas, persiste no espaço um apelo, resquício profundo
das tentativas frustradas dos viventes, contra o conformismo e a destruição.
Num contexto
em que a linguagem, enquanto matéria articulada na própria experiência, não fica
imune à agonia dos viventes, encharcando a nomeação de padecimento; em que o espaço
modificado pela seca transforma também os viventes em seres que murcham
e definham, estendendo neles a sua própria devastação; em que, a despeito da catástrofe
representada, escapa, da cena poética, um devaneio sugerido no jogo entre expectativa
e frustração; em que o espaço que definha não é abandonado pelos viventes, que nele
permanecem mesmo sob perigosa ameaça, ousando, ainda que como uma cisma, situar-se
num tempo que, por enquanto, ainda não é seu; observamos uma poesia que, mesmo quando
caminha em terras assoladas, procura nesse chão as fissuras pelas quais é possível
ensaiar o amanhã. O sujeito lírico dal farreano assemelha-se, portanto, com o historiador
benjaminiano para quem no presente, “como um ‘agora’”, se infiltram “estilhaços
do messiânico”.
DA TARDE ESTURRICADA À DESEJÁVEL:
PERCURSOS DA RESISTÊNCIA | Ao contrário de Seca que, ao se demorar
na paisagem arrasada, percebe os viventes à imagem do tempo inóspito, o poema Miragem
sertaneja é iniciado com o canto agressivo do galo que arranha e trinca a tarde
esturricada. Neste poema, desde o primeiro verso, acompanhamos a vida tentando
afirmar-se, a despeito do ambiente hostil. Aqui, observamos, de antemão, a força
dos viventes cuja metáfora é a música persistente do galo, que entoa, nesse cacarejo,
o futuro bendito. Ao contrário do galo cabralino, que não tece sozinho o amanhã,
a ave sertaneja luta pacientemente contra a paisagem infecunda que, aos poucos,
abandona sua feição antiga – esturricada, apoiada na ausência do vento,
muro – para se conformar ao agudo concebido pelo galo. Vejamos o poema:
MIRAGEM
SERTANEJA
A Teresa
Cabãnas
O canto do galo arranha
a tarde esturricada –
mas a paisagem não se abala.
Apoiada na ausência do vento
e em calor cristalizada
ela é muro –
instantâneo vitral
trincado apenas pelo diamante do bico
no cacarejo reincidente.
Mas a fenda aberta entremostra uma outra tarde
– a desejável:
dilatada por voos de borboleta,
esgarçando-se em nuvens
que iludem os olhos
com coágulos de luz prontos a se debulharem.
De modo que a ave sacode o letargo
deixa a preguiça no ninho
e (eólico)
um novo canto ascende
– relampeja –
emprenhando com seu agudo
a chuva
que se despeja.
A ação do galo
tem um efeito gradativo: arranha, aparentemente, sem nada
abalar; trinca o vitral da tarde; abre uma fenda na paisagem, até
seu canto, ao evocar a chuva, confundir-se com ela, convocando-a, já que ele, agora,
relampeja, tal como a água que desaba na terra, antes, ressequida. O galo,
assim como os seres do poema Seca, não é indiferente ao espaço agonizante,
tanto que nele atua. Todavia, enquanto no primeiro poema, os viventes, apesar de
tentarem contra o tempo árido, secam com o espaço que sonham em salvar; neste, o
personagem possui sua força mais preservada. Portanto, em Seca, percebemos
o cansaço e o esgotamento da terra e dos viventes, embora o desejo de um lugar fértil
permaneça intacto; já no poema Miragem sertaneja, esse desejo se concretiza,
ao menos em um plano mítico-poético.
Na gradação
que marca a conquista do canto do galo, observamos o percurso da resistência, que
se move entre perseverança e expectativa. Para Alfredo Bosi, “resistir é subsistir
no eixo negativo que corre do passado para o presente; e é persistir no eixo instável
do presente que se abre para o futuro”. Nos termos do poema, percebendo a terra
inóspita e a imobilidade de seu estado – espaço estéril, abafado, é muro –,
o galo afronta este presente com seu canto, na esperança de ver nascer um tempo
fértil. Seu cacarejo é, portanto, profético, pois, desde o início e especialmente
por meio da gradação no poema, observamos sinais da força do canto, antecipando
e invocando o porvir: a chuva que se despeja.
A voz lírica
marca, sobretudo, a ideia de passagem – da tarde esturricada à desejável;
do cacarejo que apenas arranha ao canto que emprenha a chuva. O ambiente, impróprio à habitação
e fechando-se em muro e calor, abre-se, pouco a pouco, à vida conservada no galo,
que divide com o espaço aquilo que conseguiu preservar: o canto. Aqui, observamos
que se o canto é esforço individual, a chuva, dilatada em borboletas e nuvens, é
oferenda ao coletivo, tal como o poema. Essa outra tarde, a desejável, não surge
como espaço seguro, a salvo do tempo e do mal. Ao contrário de uma feição definida
e estável, ela se entremostra em nuvens e borboletas, que, por sua natureza, estão
sempre em voo, movendo-se em percursos sempre possíveis de se desfazerem.
A certeza fica
por conta apenas do cacarejo reincidente do galo, o que potencializa a ideia de
resistência: mesmo sem grandes garantias de que o canto pode alguma coisa contra
um contexto de tamanha desolação, o vivente arranha, trinca, abre e relampeja, e
nessa gradação há um sujeito que faz o possível com as armas de que dispõe. À medida
que o espaço se sensibiliza com o canto, acomodando-se a ele, o galo não doma o
ambiente – isto pressuporia um sujeito iluminista, dono do saber e do poder –, mas
transmuta-se nele, fazendo de seu corpo a morada da chuva, que, antes alheia, passa
a ser matéria do seu próprio agudo.
Por fim, indicamos
que o poema Miragem sertaneja também pode ser lido como uma metáfora
do próprio fazer poético. As imagens em torno da aridez constituem a estranheza,
o desafio ao qual se submete a voz lírica. A persistência do canto indica o trabalho
perseverante do poeta que, afetado pelo que lhe cerca, empreende o árduo exercício
de aproximação com o alheio. O encontro, porém, só ocorre quando esse outro se deixa
também abalar, fazendo de si os caminhos daquele, numa relação mútua. É, pois, sobretudo
nessa convergência, efeito da inabilidade do sujeito em ser indiferente às coisas,
que nasce a poesia de Maria Lúcia Dal Farra.
NOTAS
1. “[...] a linguagem fala por si mesma apenas quando deixa de
falar como algo alheio e se torna a própria voz do sujeito.” (Theodor Adorno).
2. Expressão que designa “uma laboriosa e contínua ação sobre
a estrutura do poema, de forma que esta opera para que cada integrante que aí está
abra-se para uma nova camada significativa, propiciando assim um adensamento de
sentido” (Tereza Cabañas).
*****
KALINA NARO GUIMARÃES. Doutora em Estudos da Linguagem (UFRN). Professora do Departamento
de Letras e Artes da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB). Este texto, no seu original, foi publicado no
II Encontro Nacional e I Internacional de Linguística e Literatura, O Canto da
Palavra. Garanhuns: Universidade de Pernambuco, 2013.
*****
Agulha
Revista de Cultura
Número
114 | Junho de 2018
editor
geral | FLORIANO MARTINS | floriano.agulha@gmail.com
editor
assistente | MÁRCIO SIMÕES | mxsimoes@hotmail.com
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revisão
de textos & difusão | FLORIANO MARTINS | MÁRCIO SIMÕES
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de tradução
ALLAN
VIDIGAL | ECLAIR ANTONIO ALMEIDA FILHO | FEDERICO RIVERO SCARANI | MILENE MORAES
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